E Unibus Pluram: Acção Popular e Interesse em Agir[1]
Introdução
Este
comentário visa o estudo do Acórdão nº 0549/15
relativo aos contratos de subconcessão, sendo que a nossa atenção irá incidir
sobre a questão da extensão da legitimidade activa na protecção de interesses
difusos e sobre o interesse em agir enquanto pressuposto processual autónomo.
Assim, tentaremos estudar os aspectos mais relevantes destas duas temáticas e comentar
a decisão do Supremo Tribunal Administrativo no caso em questão.
Matéria
de Facto
Em primeiro lugar, cabe estabelecer os factos dados
como provados que nos interessam para a abordagem das matérias
supramencionadas. O Conselho de Ministros aprovou um despacho em 26 de
Fevereiro de 2015 que determinou o início do processo de abertura ao mercado de
exploração dos serviços públicos de transporte de passageiros prestados pela
CARRIS e pelo ML, através de subconcessão. Esta decisão teve como justificação,
entre outras razões, o cumprimento de reformas estruturais assumidas pelo
Estado perante instâncias internacionais; sendo que estas reformas tinham sido provocadas
pela situação de fragilidade económica em que o país se encontrava. Assim, foi
iniciado um concurso público com vista à celebração de dois contratos de
subconcessão que levou à instauração de uma providência cautelar destinada à
suspensão da eficácia da Resolução do Conselho de Ministros.
Matéria
de Direito
Interesse
Processual
A acção em questão levantou várias questões de
direito, sendo que neste comentário iremos debruçar-nos apenas sobre a questão
da legitimidade activa e do interesse processual dos requerentes.
Em primeiro lugar, cabe-nos perceber se existe
verdadeiramente uma autonomia do interesse
enquanto pressuposto processual ou se este é absorvido pela legitimidade
da parte. Em termos conceptuais, o interesse processual corresponde à
necessidade que o autor tem de instaurar e prosseguir com uma acção para a
tutela do seu direito. Dito de forma mais prática, o interesse processual
pressupõe que é inevitável recorrer à via judicial por não restar ao indivíduo
outro modo de satisfazer a sua pretensão.
Em segundo lugar, é preciso perceber que nem no
processo civil nem no processo administrativo o interesse processual é referido
explicitamente enquanto um pressuposto processual, sendo que a sua
autonomização decorre de uma visão doutrinária.
Ora, com a exigência de um interesse em agir do
autor pretende-se evitar que as pessoas sejam chamadas a juízo sem justificação
e que os tribunais sejam sobrecarregados com acções que não revelam qualquer
sentido útil. Desta forma, o interesse processual aparece como um complemento
da legitimidade processual, dado que para justificar a intervenção do tribunal
não basta a prova que o autor é titular do direito mas também de que o seu
direito necessita da tutela judicial solicitada. REMÉDIO MARQUES considera que
para se verificar o interesse em agir, a situação de carência de tutela tem de
ser real, justificada e razoável.
Devido à sua relevância para a admissão da
instauração da acção, a maioria da doutrina (TEIXEIRA DE SOUSA, MANUEL ANDRADE,
ANTUNES VARELA) considera que o interesse processual é um verdadeiro
pressuposto processual, sendo que a minoria da doutrina considera que este não
deve ser autonomizado da legitimidade (PAULA COSTA E SILVA). Por nossa parte,
consideramos que existe uma merecida separação do interesse processual em relação
à legitimidade processual, visto que o interesse em agir assume-se como um filtro
importante em favor da economia processual. Para além disso, apesar de não
existir uma consagração expressa do interesse enquanto pressuposto no
Contencioso Administrativo, a verdade é que o art. 39º faz-lhe menção directa –
sendo que AROSO DE ALMEIDA até considera que este artigo é expressão autónoma
do interesse enquanto pressuposto – e o art. 55º, nº1 faz-lhe menção indirecta
– consoante o sentido dado às expressões “directo e pessoal”.
Sabendo o que é o interesse processual e aceitando a
autonomia do mesmo, cabe-nos verificar se no caso em questão este estava
preenchido. Ora, o argumento da CARRIS e do ML baseava-se no esgotamento dos
efeitos da Resolução do Conselho de Ministros, dado que já tinha sido iniciado
o concurso que levaria a uma cessação do interesse dos requerentes. Não podemos
acolher esta interpretação. Tal como o STA refere, apesar do concurso já ter
começado, os contratos em causa ainda não foram sequer adjudicados, pelo que os
efeitos da Resolução ainda não foram esgotados. Desta forma, parece-nos
incontestável que ainda existe uma necessidade efectiva de tutela judiciária
dos requerentes que deve ser protegida, sendo que esta é real, justificada e
razoável.
Legitimidade
Activa
Por outro lado, os requeridos também invocam “que os requerentes carecem de legitimidade activa
por não estar aqui em causa a defesa de valores e bens constitucionalmente
protegidos que ancorem a instauração de qualquer ação popular”. Para
fundamentar esta posição explicam que nenhum diploma prevê “a garantia
constitucional da autonomia local” como um interesse susceptível de ser
tutelado em sede de acção popular e que as subconcessões não afectariam a
qualidade de vida dos habitantes de Lisboa, pelo que os requerentes não
poderiam ter utilizado o expediente da acção popular. Cabe-nos então perceber a
substância deste instituto e a extensão da legitimidade activa que advém do
mesmo.
O direito de acção popular é um direito fundamental
de participação política, consagrado no art. 52º, nº3 da CRP que vem dar
guarida a um reforço das acções populares tradicionais e à introdução de acções
populares ou colectivas destinadas à defesa de interesses difusos. Seguindo de
perto JORGE MIRANDA, os interesses difusos correspondem a uma manifestação da
existência ou do alargamento de “necessidades colectivas individualmente
sentidas”; traduzem um dos entrosamentos específicos de Estado e sociedade; e
implicam formas complexas de relacionamento entre as pessoas e os grupos no
âmbito da sociedade política que, só podem ser apreendidos numa nova cultura
cívica e jurídica.
Assim, os interesses difusos tratam-se de
necessidades comuns a conjuntos mais ou menos largos e indeterminados de
indivíduos que somente podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária. No
fundo, estes interesses não podem ser vistos enquanto interesses públicos ou
individuais, mas sim como uma figura híbrida que carrega uma dimensão
individual e supraindividual. Desta forma, estes interesses configuram-se como
estando dispersos por toda a comunidade, sendo que apenas a comunidade,
enquanto tal pode prossegui-los, independentemente da determinação de sujeitos.
Para além da sua consagração constitucional, existe ainda
a lei reguladora do direito de acção popular (Lei nº 83/95), que deve ser
conjugada de forma activa com o art. 9º, nº2 do CPTA tendo em conta que os
exercícios dos poderes de propositura e intervenção processam-se “nos termos
previstos na lei”.
Em primeiro lugar, e antes de estudar a LAP, é
importante perceber que o art. 9º, nº2 conduz a um “fenómeno de extensão de
legitimidade” (VASCO PEREIRA DA SILVA, AROSO DE ALMEIDA), pois alarga a
legitimidade processual a quem não alegue ser parte na relação material
controvertida. Este artigo deve ser articulado com o art. 55º, nº1, alínea f) do CPTA que concede legitimidade para impugnar um acto administrativo a pessoas e
entidades mencionadas no art. 9º, nº2 do CPTA ( tal como acontece com o art. 68º, nº1,
alínea d) relativamente à condenação à prática de acto devido). Por fim,
cabe-nos realçar o carácter exemplificativo do art. 9º, nº2 quanto aos bens que
podem ser objecto da acção popular.
Quanto à LAP, vemos logo no art. 2º e 3º uma
densificação do critério de legitimidade consagrado no CPTA e no art. 12º, nº1 a possibilidade da acção
popular revestir qualquer das formas de processo previstas pela lei processual
administrativa (sendo que a acção popular não é em si mesma uma forma de
processo). Outro aspecto muito importante é a introdução de adaptações ao
modelo de tramitação normal por via dos arts. 13º e segs, que consagram um
regime processual próprio para acções populares. O art. 14º chega a utilizar o
instituto da representação para alargar os efeitos da acção, devido ao carácter
comunitário que molda os interesses em causa.
Tendo isto em conta, cabe-nos analisar a
legitimidade activa no caso em questão. Para isso, temos de partir das
pretensões dos requerentes: (i) Assegurar a defesa de bens e
direitos do Município de Lisboa;” “(ii) Promover a perseguição judicial de
actos administrativos que ofendam o conteúdo da garantia constitucional da
autonomia local” e “(iii)
Assegurar a qualidade de vida dos habitantes de Lisboa, evitando alterações
negativas no serviço público de transporte de passageiros”.
Ora, deve ter-se em conta que a análise da
legitimidade de uma parte acaba por raramente resultar em excepção dilatória,
visto que depois de muita tinta corrida entre a defesa das teses de Barbosa de
Magalhães – que considerava que as partes seriam legítimas atendendo à relação
controvertida tal como a configurara o autor -, e de Alberto dos Reis – que
considerava que uma parte seria ilegítima caso não fosse o sujeito da relação
material controvertida litigada -, o legislador acabou por consagrar a primeira
no art 26º, nº3 do CPC.
Desta forma, “tem legitimidade activa quem alegue a
titularidade de uma situação cuja conexão com o objecto da acção proposta o
apresente em condições de nela figurar como autor” (AROSO DE ALMEIDA). Assim,
só nos resta perceber se as diferentes pretensões do autor são enquadráveis na
categoria conceptual de interesses difusos que atrás estudámos.
As pretensões apresentadas pelos requerentes apontam
a falta de intervenção do Munícipio de Lisboa enquanto concedente, a defesa do
património do Munícipio e a possível perda da qualidade de vida dos cidadãos
derivada da concessão. Assim, concordamos com o STA quando este considera que
não só é posta em causa a garantia constitucional da autonomia local e a defesa
do património do município, como a alteração do serviço pode ter consequências
profundas na qualidade do serviço e consequentemente, na qualidade de vida dos
cidadãos. Parece-nos que estas situações são abrangidas pelo conceito de
interesse difuso pois os interesses em questão assumem uma natureza
supraindividual e consequentemente, são aptos à protecção por qualquer pessoa
em razão da violação de preceitos constitucionais de legalidade e defesa da
qualidade do serviço público em questão. Desta forma, acreditamos que o art.
9º, nº2 e o art. 55º, nº1, alínea f) se encontram preenchidos, ou seja, apesar
de não existir uma lesão directa na esfera jurídica dos particulares,
encontram-se em jogo interesses gerais e unitários da comunidade que atribuem
legitimidade activa aos autores.
Acordão
Bibliografia
SILVA, Vasco Pereira da
- “O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise”, 2º Edição, 2016
MIRANDA, Jorge
- “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, 5º
Edição, 2012
ALMEIDA, Mário Aroso de
- “ Manual de Processo Administrativo”, 2º Edição, 2016
AMARAL, Jorge Augusto Pais de
- “ Direito Processual Civil”, 12º Edição, 2015
SOUSA, Miguel Teixeira de
- “ As Partes, o Objecto e a Prova na Acção
Declarativa”
- “ Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2º Edição,
2013
MARQUES, João Paulo Fernandes Remédio
- “Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3º
Edição, 2011
FREITAS, José Lebre de
- “Introdução ao Processo Civil”, 3º Edição,
Tomás Martinho Baptista
[1] A expressão
“errónea” é retirada do título de um ensaio de David Foster Wallace e brinca
com a expressão E Pluribus Unum (de muitos, um), invertendo-a (de um, muitos). Achamos
que, apesar da expressão latina não ser correcta, a ideia é adequada ao papel
desempenhado pelo actor popular.