sábado, 16 de dezembro de 2017

A legitimidade passiva dos particulares

A legitimidade passiva dos particulares


§Introdução
Este trabalho versa sobre uma análise acerca da evolução da figura da legitimidade passiva no contencioso administrativo, para seguidamente se poder proceder ao subsequente estudo sobre a aplicação desta figura processual aos particulares.
O art.10º/9 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), estipula o seguinte: “ Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares”. Atente-se que daqui advém a possibilidade de num tribunal administrativo existir um processo em que ambas as partes, tanto o autor como o demandado, sejam ambos particulares. 

§ Análise à evolução da legitimidade passiva
Relativamente à legitimidade (tanto passiva como activa) de realçar o facto de esta ser um pressuposto processual. Daí que o Prof. Vasco Pereira da Silva afirme “ No que respeita à legitimidade - que, do ponto de vista da teoria do processo, constitui o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais”[1]. Mais ainda, o Prof. Mário Aroso de Almeida afirma “O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto processual e não como uma condição de procedência da acção” [2].Observada assim a importância desta figura, que reveste um pressuposto processual, fácil se torna constatar que a evolução desta figura repercutiu sempre efeitos no contencioso administrativo.
No que respeita à história evolutiva do contencioso, o Prof. Pereira da Silva refere que “de acordo com a lógica clássica, (…) o contencioso administrativo “por natureza” era de tipo objectivo (…) a  integralidade do processo gravitava em torno do acto administrativo, que “era tudo e todas as partes” “[3].  Vemos assim que as partes eram relegadas para um papel muito mais subalterno do que aquele que possuem hoje, tanto mais que “ nem o particular nem a administração eram considerados como partes, antes estavam em juízo para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público”[4]. Uma das conclusões a que este autor chega é a de que na óptica tradicional do contencioso administrativo o particular não fazia valer direitos perante a administração. Talvez pior ainda seja o facto realçado também pelo autor de que não era apenas ao particular que era negado o estatuto de parte, mas também “à administração”. Ou seja, no contencioso clássico, a entidade administrativa, autora do acto em questão no processo contencioso, encontrava-se no processo não como parte, mas como “autoridade recorrida”[5]. A crítica que o Prof. Pereira da Silva lança a esta figura do passado é a seguinte “a autoridade que praticou o acto e o tribunal não são terceiros, mas uma só e a mesma parte”[6].
Esta visão da história foi ultrapassada com a Constituição actualmente em vigor, devido aos seus artigos 268º/4 “ é garantida aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos” e art. 20 º “ a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais”.
Aqui chegados, no dizer do Prof. Pereira da Silva, quanto ao papel que actualmente é desempenhado pela administração no contencioso (quando demandada)  “ é chamada a tribunal para explicar as razões daquela sua actuação concreta, ocupando no processo a posição de uma parte, com todos os poderes e deveres que lhe são inerentes. Tanto a administração como o particular se encontram na mesma situação processual, devendo ambos colaborar com o juiz para que a justiça seja realizada”[7]. Podemos assim ver que no actual contencioso administrativo, tal como decorre da constituição inclusive, existe uma igualdade de partes, não existindo nem uma subalternização nem uma diferenciação discriminatória no trato processual, entre particulares e administração. Tal igualdade advém também do próprio art.6º do CPTA, “igualdade das partes”. Podemos assim verificar que numa clássica acção contenciosa entre um particular e uma entidade da administração pública demandada, tanto o particular na defesa do seu interesse individual (por exemplo), e a administração na defesa do interesse público (pretende-se que seja na defesa deste interesse….), ambas as parte terão de obter pelo tribunal administrativo um verdadeiro estatuto de igualdade.
Para finalizar este breve enquadramento histórico, poderemos dizer em traços gerais que no “génesis” do contencioso, nem os particulares nem a administração eram considerados verdadeiras partes. Tendo ou não a evolução do contencioso administrativo sido tumultuosa, poderemos concluir que o estado actual da história demonstra uma clara conquista dos intervenientes processuais na relação” jurídica administrativa”.
§ A legitimidade passiva dos particulares e a sua “razão de ser”
“ No que respeita à legitimidade passiva, o critério é também o da relação material controvertida, considerando-se como partes as entidades públicas, mas também os indivíduos ou as pessoas colectivas privadas”[8], é nestas palavras que o Prof. Vasco Pereira da Silva aborda a temática da legitimidade passiva.  Acerca desta matéria de citar ainda o Prof. Aroso de Almeida, que sobre o art.10º/9 refere, “ o sentido mais óbvio, e ao mesmo tempo mais importante do preceito é o de tornar claro (…) que os particulares podem ser demandados a título principal “[9]
Cabe aqui lançar a breve trecho uma explicação sobre a importância deste preceito abranger os particulares. Atendendo às circunstâncias do mundo actual e observando a panóplia de atividades prosseguidas pela administração dos nossos dias (desde matéria regulatória, ambiental, ação/apoio social, entre outros) e à diversidade de formas de prosseguir essas atribuições, (contratação pública por exemplo), que seria incoerente se em paralelo com a “actuação administrativa” o contencioso administrativo não reconhece-se relevo aos particulares. Poderemos até afirmar que um dos paradoxos da administração dos nossos dias se prende com o facto de não ser uma administração “toda poderosa” como foi outrora na história, quando não tinha tantas atribuições; e actualmente, numa era em que à administração lhe é atribuída tantos objectivos a alcançar, esta enquanto “corpo” é muito menos reduzido, muito devido ao facto do recurso aos particulares. 
Quanto ao regime a aplicar a estas entidades privadas, o Prof. Pedro Gonçalves, na sua tese de Doutoramento afirma o seguinte “ quando desenvolvam actuações num espaço em que se encontrem investidas de poderes públicos, as entidades privadas ficam submetidas ao direito administrativo”[10]. Ou seja, daí a que muitas vezes exista o conceito de actuação no ” exercício de poderes  jurídico- administrativos”, ou a expressão actuação com base em prerrogativas de poder público.
§ Actos praticados por particulares
Problema que se suscita nesta matéria prende-se na questão de catalogação dos “actos” praticados por particulares. A este respeito, o Prof. supra citado, na mesma obra refere “ os actos das entidades privadas qualificam-se como actos administrativos nos mesmos termos em que como tais se qualificariam se fossem praticados por órgãos de entidades públicas”[11]. O autor opta por este entendimento ancorando-se no facto de considerar que a “delegação” dos poderes públicos em entidades privadas para estas tomarem decisões que posam ser consideradas como sendo “actos administrativos”, então, para este autor é razão bastante para se poder considerar estarem preenchidos os requisitos formais para a consideração destes actos como sendo administrativos. A este respeito, o próprio autor confronta a posição do Prof. Viera de Andrade, para quem “ o conceito processual de ato administrativo impugnável é diferente do conceito de acto administrativo”. Pois, para o autor em questão, o conceito de acto administrativo para termos contenciosos é mais “vasto”, conclusão esta retirada do facto de não depender da qualidade do seu autor. Isto é, para o Prof. Vieira de Andrade, enquanto que para o direito administrativo o conceito de “acto” necessita de atender ao seu autor, neste caso ao tipo de entidade que o emitiu; enquanto que para o direito do contencioso administrativo, o autor do acto administrativo não interessa para efeitos de catalogação do “acto” como sendo ou não administrativo. Sendo que como tal o autor inclui neste “segundo tipo de actos “, as decisões de entidades privadas que actuem no exercício de poderes públicos.
§ Sujeição de particulares à jurisdição administrativa
Para o Prof. Pedro Costa Gonçalves,  a sujeição de particulares à jurisdição administrativa advém da combinação dos arts. 212º/3 da CRP, relativo aos tribunais administrativos e fiscais; do art.20/1 da CRP, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva;  e do art.268º7 4 e 5 da CRP, direitos e garantias dos administrados. Sendo que o Autor acaba por referir que “ não seria constitucionalmente justificada uma solução legal que desviasse dos tribunais administrativos a competência para apreciar actos e actuações públicas apenas pelo facto de provirem de entidades privadas”[12].
Atendendo ao previsto no art.51º do CPTA, este estatui no seu nº1 “ são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”.  Ou seja,  o artigo em questão define o conceito de acto impugnável de forma clara a poder abranger os actos advenientes da actuação de entidades privadas, os ditos particulares.
Quanto às vias de impugnação, consideraremos que é directamente possível o recurso à impugnação jurisdicional, ou seja, ao contrário de outras situações, não parece ser de atender a argumentação de que também quanto a entidades particulares possa existir um dever de recurso administrativo efectuado “dentro” da própria entidade.
Mais importante é a relação entre os vários números do art.10º do CPTA. Atente-se ao nº4  deste artigo, que estipula que quando na acção seja demandado o órgão da entidade pública e não a entidade, que tal não obsta a que se considere regularmente proposta a acção em causa. Posto isto, cabe agora realçar a articulação do nº4 do presente artigo juntamente com o nº9 do mesmo, o que suscita a seguinte questão: será possível demandar um órgão de uma entidade particular e não a entidade e mesmo assim tal continuar a ser considerada regularmente proposta?  Imagine-se que A, Autor, demanda na acção o órgão de administração da sociedade B, e não contra a sociedade (neste caso a entidade). Atendendo a uma articulação com o nº4 do art.10º do CPTA, poderemos ver que estamos aqui perante uma lacuna, que a nosso ver poderá ser resolvida tendo por base uma interpretação sistemática do art.10 do CPTA, como tal, parece-nos de arguir pela regularidade da acção se nela for demandado órgão da entidade particular e não a entidade particular em si.

§ Conclusão

Como primeiro ponto conclusivo, referir que tal como acima explanado, a figura da legitimidade passiva de particulares serve quase como exemplo claro de que o contencioso administrativo não é alheio às alterações do direito administrativo e da sua realidade prática. Numa altura da sua história em que muitas das suas atribuições são realizadas com recurso ao serviço de particulares, tal realidade não é alheia ao contencioso, podendo nós assim dizer que traços gerais o contencioso “chama à colação” esses mesmos particulares que tenham uma relação com a realização e prossecução das funções da administração.
Segundo aspecto desta conclusão, referir a discordância com a posição do Sr.Prof. Vieira de Andrade, explicada supra, relativamente à sua posição acerca do conceito de ato administrativo. Para além de ser adoptada antes a posição do Prof. Pedro Gonçalves, que através da relação existente entre particular e administração conclui pela consideração de que o acto que emane dessa entidade privada, desse particular, constitui um verdadeiro acto administrativo. Suportando-nos nós nessa posição, acrescentar apenas que parece ser ainda o critério da segurança jurídica, (pois não nos parece conveniente para a estabilidade jurídica arguir que o que pode ser um ato administrativo para o contencioso administrativo pode não o ser para o direito administrativo), um motivo de valor acrescentado para enfileirar a doutrina do Prof. Pedro Costa Gonçalves.
O último ponto desta conclusão prende-se com a questão da articulação do art.10/4 com o nº9 do mesmo artigo. Parece ser um caso claro de uma lacuna na letra da lei, mas que parece também ser facilmente solucionada utilizando a mesma ratio do  nº4, pensado para a administração pública e os seus órgãos, e aplicar tal qual para os particulares. Tanto mais que parece advir até do dever de tratamento em igualdade das partes, do art.6º do CPTA, pois seria um pouco descabido ver por parte de um tribunal administrativo proferir a regularidade de uma acção em que o demandado seja um órgão de uma entidade pública, e quando se trate de um órgão de uma entidade privada, proferir a irregularidade apenas porque foi demando um órgão (por exemplo o conselho de administração da empresa X) e não a entidade privada, o particular “sociedade X” .
Adolfo Oliveira Rafael aluno nº 26097 TA Subturma 3



[1] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.368
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º edição, Almedina, pág 213
[3] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[4] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[5] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[6] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[7] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.258

[8] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.273
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º edição, Almedina, pág 251
[10] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1051
[11] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1058
[12] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1059

Da figura da culpa do lesado no processo administrativo



   Procurar-se-á com este pequeno comentário reflectir sobre a figura da culpa do lesado no processo administrativo, nomeadamente, através da análise do art. 38º CPTA e do 4º RRCEEEP. O tema em si, perdoe-se a coloquialidade da expressão, dá pano para mangas de desenvoltura, mas, sob pena de se discorrer extensivamente pela temática, o objectivo passará pela concretude e pela via de uma exposição sucinta.



1.      Enquadramento das acções de responsabilidade extra-contratual:

     A temática de sindicância da responsabilidade extra-contratual em matéria de responsabilidade pública fora controversa:  É o acórdão Blanco que dá o pontapé de saída para a autonomização da responsabilidade administrativa do Direito Administrativo face ao Direito Privado[1], considerando-se que em matéria de responsabilidade do Estado, a jurisdição administrativa teria regras próprias que só ela seria competente para julgar.
   No nosso estado actual, tudo se tornou ainda mais claro, pois o 212º da CRP consagra a ideia de que a apreciação a titulo principal de actos de soberania jurídico-públicos deve ser sempre reservada aos tribunais administrativos, sob pena de violação do seu número 3. Mais, não só a titulo principal, como também, em virtude do 4º/1º/ f, g e h do ETAF, é reconhecida a competência para julgar todos os litígios emergentes da aplicação das regras do RRCEEEP.  A fórmula, contudo, não é a mais feliz, desde logo, por ser tautológica[2], procurando a clarificação optou-se por técnicas descritivas, um pouco estranhas à dogmática geral do nosso Direito. Importa ainda referir que os particulares gozam desta tutela por consagração constitucional, tal como aponta o art. 22º da Lei Fundamental.


2.      A saga de Júlio:
  O tu quoque (também tu) tem como matriz histórica a expressão de Júlio César aquando do seu assassinato no Senado de Roma, quando se apercebeu que o seu filho adotivo, Bruto, se encontrava entre os conjurados[3]. A fórmula do tu quoque exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois sem abuso[4]:
a)     Ou prevalecer-se da situação daí decorrente
b)     Ou exercer a posição violada pelo próprio
c)     Ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada

   Existem ainda assim, mais explicações para o tu quoque, tais como a ideia de retaliação; compensação de culpas; comportamentos contraditórios, etc.[5]
  A reter deve ficar a seguinte ideia: no caso de culpa do lesado, o fundamento é o de que o prejudicado não pode ser ressarcido por estar implicado numa prática desvalorizada. Denote-se que o problema não é tanto de culpa, mas sim de causalidade[6]. A ordem jurídica postula certos valores materiais cuja prossecução pretende ver assegurados: havendo culpa do lesado nos termos do art. 570º CC, a realidade subjacente não poderá ser comparada ao ilícito comum, daí que a indemnização possa ser minorada ou suprimida. No nosso caso, sem prejuízo de um maior desenvolvimento mais à frente, a não impugnação do acto administrativo no tempo devido, consolidando-se na ordem jurídica, teria como consequência o da minoração da respectiva indemnização.


3.      Breve nota histórica:

   O art. 4º do RRCEEEP tem como antecedente histórico o art. 7º do D-lei 48051, de 21 de Novembro de 1967. Dispunha o artigo que “o dever de indemnizar , por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos actos causadores do dano; mas o direito destes à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto”. O preceito em causa suscitou divergências interpretativas na doutrina, excursando pelas posições rapidamente: a) a tese processualista, encabeçada por MARCELLO CAETANO[7], onde se defendia que a prévia impugnação do acto constituía um pressuposto processual para a admissibilidade da acção por indemnização; b) a tese substancialista, que teve como paladino, RUI MEDEIROS, defendia que a falta de impugnação relevaria apenas em sede de culpa do lesado[8]. A posição prevalecente acabou por ser a substancialista, tal é confirmado pelo ac. do STA de 30 de Outubro de 1995 onde se diz que “ a acção de indemnização para ressarcimento dos prejuízos não depende ou exige a instauração e procedência de recurso contencioso contra o acto lesivo”.

4.      A figura da culpa do lesado. 
          Diz-nos o artigo em questão que – “o tribunal pode conhecer , a titulo incidental, da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado” (nº1); não obstante, “não pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do acto inimpugnável” (nº2).
   Perante isto, cumpre desde logo assinalar que estamos perante uma acção que é autónoma. Isto é, a acção de responsabilização, passe-se o pleonasmo, será autónoma face à acção de impugnação. Depois, apesar dessa autonomia, a falta de impugnação do acto lesivo, não pode deixar de ter consequências ao nível da tutela final concedida ao interessado, impedindo-o de obter, numa outra acção, desde logo com fins indemnizatórios, os efeitos que obteria em caso de anulação do acto lesivo[9].
   Face ao exposto, uma das situações em que ocorre o acima descrito, é a do art. 4º do RRCEEEP. Onde se levantam algumas questões de enorme importância a nível processual e de tutela das posições dos lesados.
   Um dos grandes problemas que esta figura levanta é o de saber se põe em causa o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, dado que, aparentemente, o lesado não tem livre escolha do meio processual em causa. Como já vimos, quem não impugne atempadamente o acto poderá ver a sua indemnização excluída ou diminuída. Se o sistema tem caminhado para o subjectivismo, por que razão se acaba por a sua liberdade? Sintetizando: “ Se o lesado livremente escolheu não recorrer a um meio impugnatório(…) mas é confrontado com a figura da culpa do lesado quando peticiona uma indemnização pelos danos sofridos, parece forçoso concluir que tal escolha afinal não é inteiramente livre”[10].
   Na versão anterior do RRCEEP, houve quem sustentasse que o preceituado no art. 7º seria inconstitucional por restringir arbitrariamente o direito de indemnização consagrado no art. 22º da CRP[11], pois o facto do lesado só deve ter relevância se for reprovável. Felizmente, na nova redacção, o legislador minimizou os riscos desta interpretação, mas ainda assim cabe fazer a seguinte nota de reparo: O art. 38º/2 do CPTA e o 4º do RRCEEEP só se aplicam quando haja uma identidade de efeitos, isto é, quando os efeitos que o autor visa obter com a acção de responsabilidade são os mesmos que tipicamente se produziriam em caso de procedência do pedido de invalidação do acto – sendo as pretensões distintas, não há que coarctar os poderes de cognição e decisão do tribunal[12], sob pena de inconstitucionalidade por limitação dos danos indemnizáveis de modo arbitrário.
  Há ainda uma questão de fundo que cumpre mencionar: face ao que até agora foi dito, existirá um dever jurídico do lesado? Parece-nos que sim: o princípio da boa-fé, enquanto regra de conduta, contém um padrão objectivo de comportamento, exigindo ao lesado que se abstenha de contribuir para o agravamento das consequências do facto do responsável.
  



 Bibliografia: 
Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise; 
Autores vários, Regime da responsabilidade extra-contratual do e Estado, comentários à luz da jurisprudência; 
Menezes Cordeiro, Tratado V; 
Menezes Cordeiro, Litigância de má-fé, abuso do Direito de acção e culpa in agendo; 
Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentários ao CPTA; 
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado




[1] Francisco Paes Marques, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado, comentários à luz da jurisprudência, pág. 95.
[2] Ob.cit, o autor acaba por propor como ideia norteadora, a de que o legislador se bastaria pela afirmação de que o regime seria aplicável caso se agisse ao abrigo de disposições de Direito Administrativo, simplificando assim as alíneas do ETAF.
[3] Menezes Cordeiro, Litigância de má fé… pág 116., nota de rodapé 327.
[4] Menezes Cordeiro, Tratado V, pág. 359.
[5] Para mais desenvolvimentos: Ob.cit, pág 362 e ss.
[6] Ob.cit, pág, 364.
[7] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, pág 1220.
[8] Para maiores desenvolvimentos: … Marco Caldeira, pág. 299 e ss.
[9] Marco Caldeira, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado, comentários à luz da jurisprudência pág. 308º
[10] Ob.cit, pág 340
[11] Posição sufragada por Rui Medeiros, ob.cit., pág 302.
[12] Ob.cit., pág 341. 

O papel do Ministério Público na ação administrativa


O presente texto visa analisar o papel do Ministério Público na acção administrativa, pretende-se, na exposição que se segue, precisar as várias funções do Ministério Público no atual modelo de Contencioso Administrativo, atendendo à reforma de 2015. 
A principal alteração, de relevo para o estudo em causa, que a reforma de 2015 trouxe consigo foi a extensão da possibilidade de o Ministério Público intervir agora em todos os processos que sigam forma de acção administrativa, um âmbito mais alargado do que sucedia anteriormente dado que no anterior regime, este apenas podia intervir nas ações que seguissem a forma de ação especial. 
Na ação administrativa o Ministério Público pode então desempenhar várias funções que resultam, de modo genérico, do quadro do 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF). Daqui resulta que o Ministério Público terá a função de representar o Estado, de defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público. Para o desempenho destas funções ser-lhe-á atribuído pela lei um conjunto de poderes, em particular, para a defesa da legalidade democrática (a mais relevante das suas funções), o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) atribui-lhe legitimidade ativa nas várias ações administrativas, no exercício da chamada ação pública. 
Cumpre agora analisar, em concreto, cada uma das referidas funções.
Em primeiro lugar refira-se a função do Ministério Público enquanto representante do Estado, isto é, é-lhe incumbida a representação do Estado naquelas ações onde este figure como parte. Esta função decorre, desde logo, dos artigos 219º/1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), 51º ETAF, 11º CPTA e 1º do Estatuto do Ministério Público, Lei 47/86 (doravante EMP). Os artigos mencionados fazem referência apenas à representação do Estado e não de outras entidades públicas, contudo, decorre do artigo 5º/1 e 3º/1 do EMP que o Ministério Público também representa as regiões autónomas e as autarquias locais. Porém, nem o CPTA nem o ETAF fazem menção a essa representação, o que tem levado alguns autores a considerar que, tratando-se o EMP de uma lei anterior, o facto de o 51º ETAF fazer referência apenas à representação do Estado deveria conduzir a uma derrogação parcial, isto é, excluindo a representação das autarquias locais e das regiões autónomas, neste sentido MESQUITA FURTADO. Mas a correta interpretação deve ser feita noutro sentido, como decorre do artigo 5º/1 EMP, o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando se verifique uma das situações mencionadas nas alíneas a) a g), desde logo, da alínea a) decorre que o Ministério Público irá ter intervenção principal nos processos em que o Estado seja parte, surgindo como representante orgânico e obrigatório deste. Resulta pois do artigo 5º/2 EMP que a intervenção do Ministério Público, a título principal, cessa quando seja constituído mandatário nos casos das autarquias locais e das regiões autónomas, do artigo 5º/3 do mesmo diploma resulta que a representação a título principal cessa ainda no caso dos incapazes e ausentes em parte incerta caso os seus representantes legais se oponham a esta por requerimento no processo. Assim, compreende-se que no caso das autarquias locais, regiões autónomas, tal como no caso os incapazes ou ausentes em parte incerta, o Ministério Público tem uma intervenção facultativa. Deve seguir-se portanto o entendimento de SÉRVULO CORREIA, que interpreta os referidos preceitos afirmando que a representação do Estado será obrigatória, a passo que a das autarquias locas e das regiões autónomas poderá ser afastada por vontade dos seus órgãos competentes através de constituição de mandatário. Daqui decorre uma diferença substancial no tipo de representação, no caso das regiões autónomas e autarquias locais, trata-se de uma questão de patrocínio a passo que na representação do Estado poder-se-á falar de uma representação orgânica, na media em que se trata de um órgão estadual e não estamos em sede de uma representação voluntária mas sim de uma representação que decorre diretamente de uma imposição constitucional do artigo 219º/1 primeira parte da CRP, ao enunciar as funções do Ministério Público, não se trata portanto de uma representação opcional. 
É importante referir que a atuação do Ministério Público em representação do Estado, não se pode confundir com a sua atuação no exercício da ação pública (que será tratada infra). Na acção pública o Ministério Público atua em defesa dos interesses que lhe cumpre defender. Daqui resulta uma problemática que tem sido bastante discutida na doutrina, que dada a sua amplitude poderia ser objeto de uma análise autónoma, pelo que não será aqui abordada de forma exaustiva mas não se pode deixar de lhe fazer referência. Essencialmente, nos casos em que a atuação administrativa seja ilegal ou de duvidosa legalidade, o Ministério Público está perante uma encruzilhada, isto porque, por um lado tem o ser dever de defender a legalidade democrática, por outro lado também lhe incumbe a função de prossecução do interesse público. Como já foi acentuado, a questão tem dividido a doutrina, tendo mesmo sendo questionado se, no âmbito do contencioso administrativo, o Ministério Público deveria ser excluído da função de representação do Estado afim de assegurar a sua função de defesa da legalidade, neste sentido VIEIRA DE ANDRADE, ALEXANDRA LEITÃO e TIAGO SERRÃO. Uma corrente doutrinária sustenta que o artigo 69º do EMP é suficiente para resolver esta questão e sustentam que deve ser feito um juízo de ilegalidade prévio, não a título definitivo mas um juízo que poderia ser feito por qualquer sujeito, e se concluísse de modo afirmativo (pela existência de ilegalidade) deverá abster-se de representar o Estado e dar prevalência à sua função de defesa da legalidade. Nos casos em que a ilegalidade não seja flagrante, este juízo já não pode ser feito, pois o Ministério Público não tem competência para o fazer, essa competência cabe exclusivamente ao juiz, portanto, deve manter-se a representação. No pólo oposto, uma corrente doutrinária defende que sempre que possa ocorrer, ainda que eventualmente, uma colisão entre estas duas funções do Ministério Público, a representação deve sempre cessar pois não seria admissível que o Ministério Público assumisse posições incompatíveis com a legalidade. Como refere SÉRVULO CORREIA, a solução que se encontra vertida na letra do artigo 69º do EMP, deve ser reservada a casos extremos, pelo que não será sempre aplicável. Contudo, este tema não se encontra desprovido de complexidade, pelo que não cai no âmbito desta análise fazer referência a todas as posições nem adotar uma posição concreta nesta questão, mas não podia ser posta de lado e cabe portanto concluir dizendo que, a posição defendida pela maioria da doutrina é precisamente de que o dever de defender a legalidade deve sobrepor-se à função de representação do Estado, devendo esta última cessar quando as duas se encontrem em contraposição, dado que a atuação do Ministério Público deve ser sempre no sentido de seguir o critérios de legalidade, objetividade e imparcialidade, esta solução é a que melhor se coaduna com as funções legalmente atribuídas ao Ministério Público e parece ser o sentido para onde aponta o artigo 69º do EMP.

Além da representação do Estado supra referida, cabe referir agora o artigo 219º/1 in fine  da CRP, do qual resulta que cumpre ao Ministério Público a defesa da legalidade democrática, tal função resulta também do artigo 1º EMP. O CPTA reconhece ao Ministério Público amplos poderes para propor ações nos tribunais administrativos, é lhe atribuída legitimidade ativa no exercício da acção pública, para efeitos de defesa da legalidade, do interesse público de interesses difusos e interesses fundamentais. É no domínio da acção pública, que é reconhecida ainda ao Ministério Público legitimidade ativa  para efeitos de propositura de acções. Cumpre agora referir cada um dos casos em que o CPTA atribui legitimidade ativa ao Ministério Público. O primeiro artigo do CPTA a fazer esta atribuição é o 55º/1/b), do qual resulta que o Ministério Público tem legitimidade para impugnar atos administrativos. Segue-se o artigo 62º/1 CPTA, do qual resulta que tem legitimidade para assumir papel de autor, no exercício da ação pública, requerendo o seguimento do processo que, por decisão ainda não transitada em julgado, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor. Tem também legitimidade para propor ação de condenação à pratica de ato administrativo nos termos do artigo 68º/1/b) CPTA; tem legitimidade para requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa, artigo 73º/1 CPTA e terá ainda legitimidade quando se trate de norma cuja aplicação dependa de ato administrativo posterior, mediatamente operativa, artigo 73º/3 CPTA. Cumpre referir o artigo 73º/4 CPTA, dado que aqui não estamos perante um mero caso de legitimidade ativa, mas sim de um dever imposto ao Ministério Público, daqui decorre uma verdadeira obrigação de “pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, bem como de recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral”, solução que se encontra numa estreita ligação com a sua função de defesa de legalidade democrática constitucionalmente prevista.
O Ministério Público, terá também legitimidade para, nos termos do artigo 77º/1, pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas que sejam necessárias para que os atos legislativos, carentes de regulamentação, se tornem exequíveis. Terá também legitimidade para interpor ação destinada a apreciar a validade total ou parcial dos contratos, artigo 77º-A/1/b) CPTA e, ainda no mesmo artigo, é lhe conferida legitimidade para deduzir pedidos relativos à execução de contratos, artigo 77º-A/3/c) CPTA. Segundo o artigo 104º/2 CPTA, tem legitimidade para requerer intimação para a prestação de informações, consulta de processos e registos administrativos da acção pública. Tem também legitimidade ativa para requerer providências cautelares, artigo 112º/1 CPTA e ainda, quando seja parte num processo principal, o Ministério Público é dotado de legitimidade ativa, pelo artigo 113º/5 CPTA, para requerer o seguimento de um processo cautelar que esteja ligado àquele processo principal. Decorre do 130º/2 CPTA que o Ministério Público pode pedir a suspensão, com força obrigatória geral, de qualquer norma à qual tenha sido deduzido ou se proponha deduzir pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. É lhe também reconhecida legitimidade ativa para interpor recurso ordinário de uma decisão jurisdicional proferida por Tribunal administrativo contanto que essa decisão tenha sido proferida em violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais, artigo 141º/1 CPTA. Nos termos do artigo 152º/1 CPTA, o Ministério Público pode dirigir-se ao Supremo Tribunal Administrativo e fazer um pedido de uniformização de jurisprudência nos termos previstos no artigo, tem igualmente legitimidade para requerer revisão de sentença transitada em julgado com qualquer dos fundamentos do Código de Processo Civil, conforme a previsão do artigo 155º/1 CPTA. Por último, os artigos 164º/1 e 176º/1 CPTA prevêem a petição de execução, isto é, quando a administração não dê execução espontânea à sentença no prazo estabelecido pelo art 162/1 CPTA e estejam em causa os valores referidos no artigo 9º/2 CPTA, pode pedir ao tribunal que proferiu a sentença em primeiro grau de jurisdição, a execução da mesma.
De entre todas estas possibilidades, assume papel de grande relevo a legitimidade conferida pelo artigo 9º/2 CPTA, a chamada acção popular “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelas destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais” o Ministério Público pode intervir aqui então na defesa dos interesses difusos constitucionalmente protegidos, trata-se de uma norma que atribui legitimidade processual ativa genérica para a proteção dos interesses nela referidos, que será necessária quando não se esteja perante um dos casos anteriormente referidos mas existam bens ou interesses que, dada a sua importância, não podem deixar de ser acautelados.
Apesar de extensa, esta enumeração é necessária, pois dela resulta que esta função de defesa da legalidade democrática opera quase como um dever de fiscalizar as entidades públicas, visando remover do ordenamento jurídico aqueles atos indevidos e substitui-los por outros que deviam ter sito tomados. É possível compreender que, a legitimidade ativa reconhecida ao Ministério Público no CPTA, se coaduna perfeitamente com a função que lhe é constitucionalmente atribuída de defender a legalidade democrática.

Por último, mas não menos relevante, temos a intervenção do Ministério Público nos processos em que não é parte. Esta função surge enunciada no artigo 85º CPTA, foi precisamente neste ponto que se fez notar a reforma de 2015, como já referido supra, agora a possibilidade de intervenção, por parte do  Ministério Público, foi estendida a todas as acções administrativas e não apenas às que seguem forma especial (visto que a reforma pôs fim à dicotomia anteriormente existente). Esta intervenção tem em vista a melhor aplicação de direito e esclarecimento de factos, assim refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA.  Esta intervenção poderá traduzir-se num parecer sobre o mérito da causa a exprimir uma opinião sobre a decisão que deva ser tomada pelo tribunal, ou num requerimento a solicitar a realização de diligências instrutoras nos termos em que seja admitido pelo artigo 85º/3 CPTA. No regime que precede a reforma de 2015, o Ministério Público tinha dois momentos de intervenção necessária, a emissão do visto inicial e do visto final, em que teria ainda possibilidade de suscitar questões de índole processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa. No regime atual, não só a intervenção não é obrigatória, pois deve circunscrever-se aos casos em que tal se justifique em função da matéria em causa (artigo 85º/2), como também só ocorre uma vez em cada processo e deve versar apenas sobre questões de carácter substantivo. Ao analisar o artigo 85º/2 não podemos descurar do artigo 9º/2, isto é, para saber se a emissão de parecer por parte do Ministério Público é, efetivamente devido, cabe identificar o particular interesse que deve ser protegido, dito de outro modo, o Ministério Público deverá intervir (emitir o seu parecer) quando uma decisão, por parte de um Tribunal Administrativo, seja suscetível de por em causa certos valores que devem ser defendidos por aquele. Assim para que o Ministério Público possa intervir em processos dos quais não é parte, de iniciativa de outros sujeitos processuais, é necessário que esteja preenchido algum dos requisitos do artigo 85º/2: defesa de direitos fundamentais; interesse público especialmente relevante; algum dos valores ou bens referidos no artigo 9º/2 CPTA. 
Foi já referido supra que os poderes do ministério público no que toca a intervenção nos processos de que não é parte foi estendido a todas as ações administrativas não tendo ficado agora limitado àquelas que seguem a forma especial. Esta premissa, apesar de correta, pode conduzir à ideia errónea de que os poderes do Ministério Público foram estendidos com a reforma de 2015, contudo, tal não se pode afirmar. Ao contrapor os regimes, vemos que, de facto, os poderes foram restringidos, desde logo pela intervenção única que foi já referida (em contraposição com a necessidade de intervir duas vezes) e pela restrição da sua pronúncia ao mérito da causa que no regime anterior também podia ser feita em relação a questões processuais. No fundo a extensão a todas as ações foi apenas uma consequência de se ter posto fim à dicotomia ação comum/ação especial.

Bibliografia:
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013 
MESQUITA FURTADO, Leonor, A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo
PEREIRA DA SILVA, Vasco O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009
SANTOS SILVA, Cláudia Alexandra dos, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, e-Pública / ICJP-FDUL







O interesse processual da ré administração em reconvir nas ações administrativas


1.    Introdução 

A reconvenção é a pretensão autónoma deduzida pelo réu de dado processo judicial contra o autor (ou terceiros que venham a figurar como autores) desse mesmo processo judicial. A pretensão do réu é autónoma porque diverge de uma de duas pretensões processuais intrínsecas do réu: ser absolvido da instância ou ser absolvido do pedido. Diferentemente, o réu reconvinte pretende com a dedução do pedido reconvencional uma utilidade económica ou prática diferente da mera absolvição da instância ou da mera absolvição do pedido.

A procedência do pedido reconvencional contra a procedência do pedido principal é perspetivada como uma forma de defesa daquele pedido, isto é, uma defesa contra ataque. Desta forma, a doutrina processual tem vindo a denominar a reconvenção como uma ação cruzada ou numa ação dentro de uma outra ação.

A autonomia da reconvenção revela-se na circunstância de a improcedência da ação ou a absolvição do réu da instância não obstar à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido em juízo, isto é, quando este esteja relativamente ao pedido principal numa relação de dependência ou de subsidiariedade imprópria – nº6 do artigo 266º do Código de Processo Civil (CPC).

A reconvenção é qualificada como uma faculdade processual e não um ónus. O réu tanto pode aproveitar o processo em que figura como réu para deduzir o pedido reconvencional como pode deduzir autonomamente a pretensão correspondente àquele seu direito em processo destinado apenas ao seu julgamento, figurando como autor e não como reconvinte – nº1 do artigo 266º do CPC. Assim, a reconvenção, apesar de ser uma forma de defesa do réu, não é abrangida pelo ónus de concentração de toda a defesa na contestação.

A natureza facultativa da reconvenção traduz um equilíbrio entre a prossecução do interesse da economia processual e da manutenção das condições necessárias para julgar a causa em tempo razoável. O facto de a dedução do pedido reconvencional resultar numa cumulação de várias pretensões num único processo, tornando-o mais denso e complexo e, deste modo, mais difícil de resolver, tem vindo a carimbar a reconvenção como faculdade ou direito do réu unicamente dependente da sua vontade, mediante a existência de conexões entre pedidos processualmente específicas[1].

A regulamentação deste instituto processual é dada pelo CPC, sendo que, no domínio do Contencioso Administrativo apenas apareceu com a reforma de 2015, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015 de 02/10, através do disposto no artigo 83º-A. Até a este marco temporal legislativo, onde se expressamente se referiu a reconvenção pelo Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos (CPTA).

2.    A reconvenção no Contencioso Administrativo


Como refere ELIZABETH FERNANDEZ, a reconvenção é um verdadeiro “corpo estranho” do processo administrativo, que não fez correr muita tinta no passado no mundo do contencioso administrativo[2].

A autora também revela uma transposição leviana do regime da reconvenção para o CPTA, pela ausência de conexões específicas ao domínio administrativo, através da parca regulamentação que se aduz do novo 83º-A, que se limitou a importar do regime processual civil, a forma de introdução em juízo do pedido reconvencional. Como tal, a solução passará pela aplicação subsidiária do artigo 266º CPC, por via do artigo 1º CPTA, em tudo o que não se encontre especialmente regulado.

O ponto central onde queremos chegar neste ensaio é o de averiguar a possibilidade de, perante a existência de uma ação administrativa contra a Administração, esta última poder formular um pedido reconvencional de execução contra o autor, aproveitando a ação.

3.    Excurso. O “fim” do Privilégio da Execução Prévia


Há que ter em conta o novo regime do CPA, nomeadamente quanto às regras da Secção V do Capítulo II da Parte IV do diploma, em especial, à nova redação do artigo 176º e 183º. Com efeito, o legislador manifestou uma vontade de extinguir o chamado “privilégio de execução prévia”, passando a exigir da Administração a solicitação de um título executivo dado pelos tribunais administrativos para executar, o que até então não acontecia.

Apesar da intenção do legislador ter passado para o corpo da norma do nº1 do artigo 176º do CPA, não lhe concedeu operatividade imediata. Tal pode ser extraído através diploma preambular que aprovou o novo CPA – número 2 do artigo 8º - que fixou um prazo de 60 dias a contar da data de entrada em vigor do referido diploma para a aprovação de um regime para regular as situações em que a Administração gozaria de um privilégio de execução prévia. Neste regime transitório, seria aplicável o disposto no nº2 do 149º do regime procedimental do diploma antecessor, portanto, o CPA de 1991, que determina, em termos de princípio geral, a autotutela executiva a favor da Administração Pública – art. 6º do já referido diploma que aprova o CPA (DL nº 4/2015, de 7 de janeiro).

Como refere PAULO OTERO[3], este regime transitório dado pelo CPA é inconstitucional, por violação da lei de autorização legislativa concedida ao Governo[4]. Este não estava autorizado a manter a vigência de uma disposição do Código anterior. Por sua vez, estava obrigado a definir os casos e as formas em que a autotutela poderia ocorrer, o que tampouco aconteceu. Ao invés, o Governo remeteu para diploma legislativo posterior uma tal incumbência, mantendo em vigor o regime antigo, consubstanciando uma verdadeira atuação a descoberto da lei habilitante.

O mesmo autor, baseando-se na inconstitucionalidade de tal regime transitório, refere qualquer execução coerciva pela Administração Pública dos atos administrativos será sempre inconstitucional, salvo em casos de urgente necessidade pública. E tal inconstitucionalidade, por revelar uma ausência de prévia intervenção judicial autorizativa, torna a execução administrativa nula, por violação do princípio da separação de poderes.

4.    Soluções possíveis


Bem vistos os planos substantivos, em termos processuais, antes da entrada em vigor do novo CPA, não haveria grandes dúvidas quanto à falta de interesse em agir por parte da Administração quando intentasse ação nos tribunais administrativos para executar um administrado. Tendo a Administração Pública um poder genérico para executar, o já chamado “privilégio de execução prévia” ou “autotutela executiva”, inexistia um interesse por parte daquela em intentar uma ação para este fim, visto que o uso do meio processual era desnecessário para executar, atendendo ao poder que lhe era atribuído por lei. Neste sentido, os tribunais apenas se debruçavam acerca de questões suscitadas pelos executados contra as atuações administrativas, e nunca por pretensões executórias por parte da Administração. Resumindo, o meio processual em análise era irrelevante para a aferição da decisão pela execução. Sendo irrelevante, não haveria interesse em agir. Sendo o nosso ponto a reconvenção administrativa, inexistindo interesse em agir por parte da Administração para intentar uma ação principal com pretensões executórias contra um particular, tampouco inexistiria interesse em reconvir.

No panorama atual, e pelas considerações acima descritas, apelamos a uma reconsideração do problema. Vimos que o regime transitório do CPA quanto à execução administrativa oferece grandes dúvidas de conformidade constitucional. No entanto, mesmo que se propugne por tal desfecho, há uma ausência de soluções fixadas pela lei, visto que o tal diploma que o Governo fixou como meta regulativa ainda não deu sinais de desenvolvimento.

Poder-se-ia dizer que, a Administração poderia iniciar uma praxis conforme à tal intenção do legislador em dar primazia ao recurso prévio aos tribunais para exercer a sua atividade executória, ficando esta na dependência de uma habilitação judicial para proceder ao ato de execução. Esta interpretação retiraria da expressão do legislador em inverter a situação regra de autotutela executiva um sentido útil, que consubstanciaria na expurgação de um poder-dever que anteriormente seria dado à Administração – o já referido privilégio de execução prévia. Neste sentido, haveria um interesse em agir, quer através de uma iniciativa administrativa junto dos tribunais para obter tal habilitação executória, quer através da reconventio inserida dentro de uma ação proposta por um particular, contra a ré Administração, aproveitando o processo nos termos já examinados.

Em tese, o interesse em agir seria o de afastar a aplicação do regime transitário, nos termos apontados acima por PAULO OTERO, evitando a nulidade da execução por aplicação de uma norma inconstitucional. O que se diz vale para a reconvenção, no entanto esta enfrenta grandes obstáculos, no que toca ao regime processual administrativo.

Dentro desta interpretação, a solução à questão formulada importa determinar se é possível à Administração, ceder ou delegar, ou, se se preferir, renunciar à sua competência, em especial, a executiva consagrada na Constituição e concretizada em lei ordinária, procedendo, assim, com base num critério num critério de oportunidade, à reorganização casuística da separação de poderes.
No entanto, é entendimento pacífico da doutrina mais relevante que o a obtenção de título executivo por via de reconvenção configuraria uma inadmissível renúncia à competência, sendo que a autotutela executiva não é uma mera faculdade para a Administração, mas sim, um dever[5].

Sabemos, também, que a Administração, por estar vinculada ao princípio da legalidade, não pode furtar-se a aplicar uma norma ou solução legal, ainda que esta seja inconstitucional. A menos que haja uma apreciação pelo Tribunal Constitucional que constate a inconstitucionalidade através de uma declaração com força obrigatória geral, a Administração não pode seguir outro caminho que não a da aplicação da norma inconstitucional, atendendo à já referida vinculação ao princípio da legalidade, própria do Direito Administrativo. O que se diz tem como corolário o princípio da separação de poderes, isto é, a função de fiscalização de normas e a apreciação da compatibilidade destas com a Lei Fundamental é apenas e só atribuída ao poder judicial, e dentro do poder judicial, ao Tribunal Constitucional[6].

Assim, uma hipotética desaplicação, por parte da Administração, de norma entendida como inconstitucional, constitui em si, uma conduta contrária à Constituição, por violação aos princípios já referidos.

Atendendo ao alvo do nosso estudo, embora o regime transitório dado pelo artigo 6º e número 2 do artigo 8º do DL 4/2015, de 7 de janeiro seja inconstitucional, a Administração está vinculada a atuar de acordo com o regime procedimental pretérito, ou seja, com o nº2 do 149º do DL 442/91, de 15 de novembro, alterado pelo DL 6/96, de 31 de janeiro. O que se diz confirma, então, a manutenção do privilégio de execução prévia.

Continuando a existir tal privilégio, pode continuar a afirmar-se que a Administração não detêm um interesse processual em recorrer aos Tribunais Administrativos para executar os administrados. Com os moldes já supra referidos, não tendo a Administração tal interesse para propor uma ação (principal), tampouco terá interesse em exercer a mesma prerrogativa através de uma causa reconvencional.

No entanto, podemos afirmar, que embora a norma do artigo 176º CPA ainda seja uma verdadeira norma em branco, no que toca à sua aplicabilidade, ela dita um ponto de rotura com o sistema administrativo até então. A intenção do legislador em “retirar” do privilégio da execução prévio o carácter de regra geral, admite uma judicialização da atividade executória da Administração Pública.

Esta mudança de paradigma, ao efetivar-se, implicará uma reconsideração nos planos examinados, ou seja, não existirão grandes dúvidas em afirmar a existência de um interesse processual por parte da Administração ao socorrer-se deste tipo de pretensões, assim como também não haverá qualquer dos obstáculos já referidos à admissão de um pedido reconvencional por parte da Administração que figura como demandada, aproveitando, assim a propulsão dada pelo autor da causa.

Porém, levantam-se alguns problemas de tramitação processual, pelo regime que foi instituído no CPTA, nomeadamente o da possibilidade de reconvenção de pedidos tendentes a obter execução enxertados em ações declarativas, designadamente naquelas em que o autor impugna o ato de onde deriva a obrigação cujo cumprimento se pretende impor. Neste aspeto, concordamos com a solução dada por ELIZABETH FERNANDEZ, que entendemos ser a única – aplicação do nº3 do artigo 266º e nºs 2 e 3 do artigo 37º (todos do CPC).




[1] PAULA COSTA E SILVA, “A natureza processual da tutela do terceiro adquirente de boa-fé e a título oneroso. Excepção, reconvenção e eficácia preclusiva do caso julgado” in “O Direito”, Ano 141º, 2009, I, págs. 224 e ss.

[2] ELIZABETH FERNANDEZ, “A propósito e a contexto da reconvenção nas ações administrativas” in “Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, coord. CARLA AMADO GOMES, ANA FERNANDA NEVES E TIAGO SERRÃO, 3ª Edição, 2017, AAFDL Editora, págs. 755 e ss.

[3] PAULO OTERO, “Problemas constitucionais do novo Código do Procedimento Administrativo – uma introdução” in “Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo” – (Coord.) Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão, 2015, 2ª Edição, AAFDL Editora, págs.17 e ss.

[4] Em especial, atendendo à norma da 2ª parte da alínea ss) do artigo 2º da Lei nº 42/2014 de 11 de julho.

[5] RUI GUERRA DA FONSECA, “O fundamento da autotutela executiva”, págs. 705-706.

[6] Acerca deste ponto, vide o Parecer Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 17 de janeiro de 2013 em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/f1a5e96ed483a61980257a7c003d0674?OpenDocument&ExpandSection=-2