A
legitimidade passiva dos particulares
§Introdução
Este
trabalho versa sobre uma análise acerca da evolução da figura da legitimidade
passiva no contencioso administrativo, para seguidamente se poder proceder ao
subsequente estudo sobre a aplicação desta figura processual aos particulares.
O art.10º/9
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), estipula
o seguinte: “ Podem ser demandados
particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas
que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares”. Atente-se
que daqui advém a possibilidade de num tribunal administrativo existir um
processo em que ambas as partes, tanto o autor como o demandado, sejam ambos
particulares.
§ Análise à evolução da legitimidade
passiva
Relativamente
à legitimidade (tanto passiva como activa) de realçar o facto de esta ser um
pressuposto processual. Daí que o Prof. Vasco Pereira da Silva afirme “ No que respeita à legitimidade - que, do
ponto de vista da teoria do processo, constitui o elo de ligação entre a
relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os
titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às
decisões dos tribunais”[1].
Mais ainda, o Prof. Mário Aroso de Almeida afirma “O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto processual e não como
uma condição de procedência da acção” [2].Observada
assim a importância desta figura, que reveste um pressuposto processual, fácil
se torna constatar que a evolução desta figura repercutiu sempre efeitos no
contencioso administrativo.
No que
respeita à história evolutiva do contencioso, o Prof. Pereira da Silva refere
que “de acordo com a lógica clássica, (…)
o contencioso administrativo “por natureza” era de tipo objectivo (…) a integralidade do processo gravitava em torno
do acto administrativo, que “era tudo e todas as partes” “[3].
Vemos assim que as partes eram
relegadas para um papel muito mais subalterno do que aquele que possuem hoje,
tanto mais que “ nem o particular nem a administração eram considerados como
partes, antes estavam em juízo para colaborar com o tribunal na defesa da
legalidade e do interesse público”[4].
Uma das conclusões a que este autor chega é a de que na óptica tradicional do
contencioso administrativo o particular não fazia valer direitos perante a
administração. Talvez pior ainda seja o facto realçado também pelo autor de que
não era apenas ao particular que era negado o estatuto de parte, mas também “à
administração”. Ou seja, no contencioso clássico, a entidade administrativa,
autora do acto em questão no processo contencioso, encontrava-se no processo
não como parte, mas como “autoridade recorrida”[5].
A crítica que o Prof. Pereira da Silva lança a esta figura do passado é a
seguinte “a autoridade que praticou o acto e o tribunal não são terceiros, mas
uma só e a mesma parte”[6].
Esta visão
da história foi ultrapassada com a Constituição actualmente em vigor, devido
aos seus artigos 268º/4 “ é garantida aos administrados tutela jurisdicional
efectiva dos seus direitos” e art. 20 º “ a todos é assegurado o acesso ao
direito e aos tribunais”.
Aqui
chegados, no dizer do Prof. Pereira da Silva, quanto ao papel que actualmente é
desempenhado pela administração no contencioso (quando demandada) “ é chamada a tribunal para explicar as
razões daquela sua actuação concreta, ocupando no processo a posição de uma
parte, com todos os poderes e deveres que lhe são inerentes. Tanto a administração
como o particular se encontram na mesma situação processual, devendo ambos
colaborar com o juiz para que a justiça seja realizada”[7].
Podemos assim ver que no actual contencioso administrativo, tal como decorre da
constituição inclusive, existe uma igualdade de partes, não existindo nem uma
subalternização nem uma diferenciação discriminatória no trato processual,
entre particulares e administração. Tal igualdade advém também do próprio
art.6º do CPTA, “igualdade das partes”. Podemos assim verificar que numa
clássica acção contenciosa entre um particular e uma entidade da administração
pública demandada, tanto o particular na defesa do seu interesse individual (por
exemplo), e a administração na defesa do interesse público (pretende-se que
seja na defesa deste interesse….), ambas as parte terão de obter pelo tribunal
administrativo um verdadeiro estatuto de igualdade.
Para
finalizar este breve enquadramento histórico, poderemos dizer em traços gerais
que no “génesis” do contencioso, nem os particulares nem a administração eram
considerados verdadeiras partes. Tendo ou não a evolução do contencioso
administrativo sido tumultuosa, poderemos concluir que o estado actual da
história demonstra uma clara conquista dos intervenientes processuais na relação”
jurídica administrativa”.
§ A legitimidade passiva dos particulares e a sua “razão de
ser”
“ No que respeita à legitimidade passiva, o critério é
também o da relação material controvertida, considerando-se como partes as
entidades públicas, mas também os indivíduos ou as pessoas colectivas privadas”[8],
é nestas palavras que o Prof. Vasco Pereira da Silva aborda a temática da
legitimidade passiva. Acerca desta
matéria de citar ainda o Prof. Aroso de Almeida, que sobre o art.10º/9 refere,
“ o sentido mais óbvio, e ao mesmo tempo mais importante do preceito é o de
tornar claro (…) que os particulares podem ser demandados a título principal “[9].
Cabe aqui lançar a breve trecho uma explicação sobre a
importância deste preceito abranger os particulares. Atendendo às
circunstâncias do mundo actual e observando a panóplia de atividades
prosseguidas pela administração dos nossos dias (desde matéria regulatória,
ambiental, ação/apoio social, entre outros) e à diversidade de formas de
prosseguir essas atribuições, (contratação pública por exemplo), que seria
incoerente se em paralelo com a “actuação administrativa” o contencioso
administrativo não reconhece-se relevo aos particulares. Poderemos até afirmar
que um dos paradoxos da administração dos nossos dias se prende com o facto de
não ser uma administração “toda poderosa” como foi outrora na história, quando
não tinha tantas atribuições; e actualmente, numa era em que à administração
lhe é atribuída tantos objectivos a alcançar, esta enquanto “corpo” é muito menos
reduzido, muito devido ao facto do recurso aos particulares.
Quanto ao regime a aplicar a estas entidades privadas, o
Prof. Pedro Gonçalves, na sua tese de Doutoramento afirma o seguinte “ quando
desenvolvam actuações num espaço em que se encontrem investidas de poderes
públicos, as entidades privadas ficam submetidas ao direito administrativo”[10].
Ou seja, daí a que muitas vezes exista o conceito de actuação no ” exercício de
poderes jurídico- administrativos”, ou a
expressão actuação com base em prerrogativas de poder público.
§ Actos praticados por particulares
Problema que se suscita nesta matéria prende-se na questão
de catalogação dos “actos” praticados por particulares. A este respeito, o Prof.
supra citado, na mesma obra refere “ os actos das entidades privadas
qualificam-se como actos administrativos nos mesmos termos em que como tais se
qualificariam se fossem praticados por órgãos de entidades públicas”[11].
O autor opta por este entendimento ancorando-se no facto de considerar que a
“delegação” dos poderes públicos em entidades privadas para estas tomarem
decisões que posam ser consideradas como sendo “actos administrativos”, então,
para este autor é razão bastante para se poder considerar estarem preenchidos
os requisitos formais para a consideração destes actos como sendo
administrativos. A este respeito, o próprio autor confronta a posição do Prof.
Viera de Andrade, para quem “ o conceito processual de ato administrativo
impugnável é diferente do conceito de acto administrativo”. Pois, para o autor
em questão, o conceito de acto administrativo para termos contenciosos é mais
“vasto”, conclusão esta retirada do facto de não depender da qualidade do seu
autor. Isto é, para o Prof. Vieira de Andrade, enquanto que para o direito
administrativo o conceito de “acto” necessita de atender ao seu autor, neste
caso ao tipo de entidade que o emitiu; enquanto que para o direito do contencioso
administrativo, o autor do acto administrativo não interessa para efeitos de
catalogação do “acto” como sendo ou não administrativo. Sendo que como tal o
autor inclui neste “segundo tipo de actos “, as decisões de entidades privadas
que actuem no exercício de poderes públicos.
§ Sujeição de particulares à jurisdição administrativa
Para o Prof. Pedro Costa Gonçalves, a sujeição de particulares à jurisdição
administrativa advém da combinação dos arts. 212º/3 da CRP, relativo aos
tribunais administrativos e fiscais; do art.20/1 da CRP, acesso ao direito e
tutela jurisdicional efectiva; e do
art.268º7 4 e 5 da CRP, direitos e garantias dos administrados. Sendo que o
Autor acaba por referir que “ não seria constitucionalmente justificada uma
solução legal que desviasse dos tribunais administrativos a competência para
apreciar actos e actuações públicas apenas pelo facto de provirem de entidades
privadas”[12].
Atendendo ao previsto no art.51º do CPTA, este estatui no
seu nº1 “ são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes
jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”. Ou seja,
o artigo em questão define o conceito de acto impugnável de forma clara
a poder abranger os actos advenientes da actuação de entidades privadas, os
ditos particulares.
Quanto às vias de impugnação, consideraremos que é
directamente possível o recurso à impugnação jurisdicional, ou seja, ao
contrário de outras situações, não parece ser de atender a argumentação de que
também quanto a entidades particulares possa existir um dever de recurso
administrativo efectuado “dentro” da própria entidade.
Mais importante é a relação entre os vários números do
art.10º do CPTA. Atente-se ao nº4 deste artigo,
que estipula que quando na acção seja demandado o órgão da entidade pública e
não a entidade, que tal não obsta a que se considere regularmente proposta a acção
em causa. Posto isto, cabe agora realçar a articulação do nº4 do presente
artigo juntamente com o nº9 do mesmo, o que suscita a seguinte questão: será
possível demandar um órgão de uma entidade particular e não a entidade e mesmo
assim tal continuar a ser considerada regularmente proposta? Imagine-se que A, Autor, demanda na acção o
órgão de administração da sociedade B, e não contra a sociedade (neste caso a
entidade). Atendendo a uma articulação com o nº4 do art.10º do CPTA, poderemos
ver que estamos aqui perante uma lacuna, que a nosso ver poderá ser resolvida
tendo por base uma interpretação sistemática do art.10 do CPTA, como tal,
parece-nos de arguir pela regularidade da acção se nela for demandado órgão da
entidade particular e não a entidade particular em si.
§ Conclusão
Como primeiro ponto conclusivo, referir que tal como acima
explanado, a figura da legitimidade passiva de particulares serve quase como
exemplo claro de que o contencioso administrativo não é alheio às alterações do
direito administrativo e da sua realidade prática. Numa altura da sua história
em que muitas das suas atribuições são realizadas com recurso ao serviço de particulares,
tal realidade não é alheia ao contencioso, podendo nós assim dizer que traços
gerais o contencioso “chama à colação” esses mesmos particulares que tenham uma
relação com a realização e prossecução das funções da administração.
Segundo aspecto desta conclusão, referir a discordância com
a posição do Sr.Prof. Vieira de Andrade, explicada supra, relativamente à sua
posição acerca do conceito de ato administrativo. Para além de ser adoptada
antes a posição do Prof. Pedro Gonçalves, que através da relação existente
entre particular e administração conclui pela consideração de que o acto que
emane dessa entidade privada, desse particular, constitui um verdadeiro acto administrativo.
Suportando-nos nós nessa posição, acrescentar apenas que parece ser ainda o critério
da segurança jurídica, (pois não nos parece conveniente para a estabilidade
jurídica arguir que o que pode ser um ato administrativo para o contencioso
administrativo pode não o ser para o direito administrativo), um motivo de
valor acrescentado para enfileirar a doutrina do Prof. Pedro Costa Gonçalves.
O último ponto desta conclusão prende-se com a questão da
articulação do art.10/4 com o nº9 do mesmo artigo. Parece ser um caso claro de
uma lacuna na letra da lei, mas que parece também ser facilmente solucionada
utilizando a mesma ratio do nº4, pensado
para a administração pública e os seus órgãos, e aplicar tal qual para os
particulares. Tanto mais que parece advir até do dever de tratamento em
igualdade das partes, do art.6º do CPTA, pois seria um pouco descabido ver por
parte de um tribunal administrativo proferir a regularidade de uma acção em que
o demandado seja um órgão de uma entidade pública, e quando se trate de um
órgão de uma entidade privada, proferir a irregularidade apenas porque foi
demando um órgão (por exemplo o conselho de administração da empresa X) e não a
entidade privada, o particular “sociedade X” .
Adolfo Oliveira Rafael aluno nº 26097 TA Subturma 3
[1]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.368
[2]
ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º
edição, Almedina, pág 213
[3]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[4]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[5]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[6]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[7]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.258
[8]
SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso
administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.273
[9]
ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º
edição, Almedina, pág 251
[10]
GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina,
2005, pág 1051
[11]
GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina,
2005, pág 1058
[12]
GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina,
2005, pág 1059