Conceito e delimitação da figura dos
Contra-interessados
Tendo em conta a conceptualização tradicional de
relação juridico-administrativa em sentido bipolar - assente no relacionamento
entre a Administração e os particulares na respectiva actuação administrativa,
tendo em vista o interesse público - surge uma outra concepcão na função
jurisadministrativa, como resultado de uma crescente actuação administrativa
multipolar, devido aos efeitos reflexos que se podem fazer sentir na
generalidade dos administrados.
Neste sentido, a ideia assente de administrado como sujeito, titular de direitos e deveres,
essencialmente valorizada pela transição para o Estado Social, traz consigo
algumas “precauções” jurídicas em garantir um sistema ambivalente, tanto no que
toca à satisfação dos interesses da Administração como aos interesses dos
particulares. De entre tais preocupações, é passível de verificar a existência
de certas regras relativamente à actuação da Administração, como dos
particulares, mas igualmente das posições subjectivas de terceiros conexamente
afectos à mesma relação jurídica (entre Administração e administrados). Tais
relações multilaterais reclamam uma tutela jurídica acrescida, e como tal
justificam a legitimidade atribuída a terceiros que vejam as suas posições
jurídicas ameaçadas, por força dos efeitos reflexos de determinadas actuações
administrativas.
Assim, para efeitos de impugnação contenciosa são designados
como contra-interessados, os terceiros que integrem a relação multilateral e
como tal vêm as suas posições jurídicas afectadas, surge então a tal
preocupação garantística, permitindo uma melhor prossecução do interesse
público, e redução da litigiosidade em nome do Princípio da economia processual,
preservando assim o efeito útil das decisões administrativas.
No domínio do contencioso dos actos administrativos,
tanto nos processos de impugnação de actos administrativos, como nos processos
de condenação à prática de actos administrativos, encontram-se em domínios de
actuação no CPTA, os potenciais contra-interessados, nos artigos 57º e 68º/2,
sendo tal legitimidade avaliada consoante o critério presente no artigo 10º/1,
3ª parte. Tal critério delimitativo presente no artigo 10º, pretende abarcar
situações de terceiros titulares de interesses potencialmente contrapostos aos
do autor desde que, integrados em situações jurídicas que possam ser afectadas
pela eventual procedência de uma acção. Por conseguinte, o artigo 68º reforça tal fundamento, no seu
conteúdo igualmente delimitador, ao “restringir” às pessoas “que possam ser
identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos
no processo administrativo”, e portanto indiciando um critério geral -
“titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Podendo os
contra-interessados tratarem-se de pessoas a quem a procedência da acção possa
prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação contra a qual
recorre o autor.
No entanto, tal intervenção processual dos contra-interessados é
condicionada por força da exigência legal de identificação ou citação por parte
do recorrente na petição, sendo que em caso de ocorrer erro ou falta de
identificação dos mesmos, poderá ser regularizada pelo tribunal, no entanto no
caso de haver preterição da identificação, a consequência jurídica é mais
penosa, já que configura tal situação ferida de ilegitimidade passiva, artigo
89º CPTA, e consequentemente obsta ao prosseguimento da causa. De facto, a
imposição deste ónus ao autor, revela não só a preocupação por uma redução da
litigiosidade, mas igualmente atentando a razões de ordem subjectiva quanto aos
efeitos transversais que se façam sentir quanto aos contra-interessados, mas igualmente
por se tratar do ente jurídico com mais contacto com a situação em causa, tendo
consequentemente uma maior percepção dos interesses conflituantes em causa.
É passível de ser encontrada a sua evidência na lógica
garantística do princípio geral do contraditório, decorrente do principio da
tutela jurisdicional efectiva, como também do princípio da igualdade das partes
sempre que envolva a possibilidade de lesão de direitos ou interesses legítimos
de terceiros. Alicerçada a protecção dos contra-interessados, torna-se evidente
o seu reflexo quanto à eficácia subjectiva do caso julgado, isto é ao efeito
útil da decisão, já que a decisão que directamente prejudique terceiros não
lhes poderá ser oponível, visto não lhes ter sido possibilitada a sua defesa no
processo, ainda que seja reconhecida eficácia erga omnes a uma dada decisão, quem não seja chamada ao processo
não poderá ser prejudicado por tal decisão (devido ao efeito directo da
garantia dos direitos fundamentais acima referidos).
Como tal, é verificável um sistema que garante valores
de ordem subjectiva como de ordem objectiva, garantindo os interesses de
terceiros, mas igualmente a unidade do sistema jurídico mediante a resolução
definitiva do litigio, e consequentemente a “paz jurídica”, combinada com
razões de economia processual.
Ainda neste sentido, cabe ter presente que o sistema
jurídico não é alheio a uma certa imposição de critérios legais delimitativos de
terceiros que de facto se insiram no conceito de contra-interessados, seja
através de interpretação da letra da lei, pela existência de interesses de
terceiros que possam ser prejudicados, seja pelo carácter directo dos efeitos de
uma dada decisão judicial. Mas tal não não basta em termos contenciosos e
processuais, há que formular um juízo de prognose, o qual consiste
essencialmente na avaliação pelo juíz, Ministério Público e até a entidade
recorrida, do conteúdo constante na petição de forma a determinar o universo
concreto de contra-interessados. Podendo ainda tal juízo incidir numa
ponderação da projecção subjectiva que certos efeitos possam ter nas posições
jurídicas de determinadas pessoas, seja quanto à sua alteração seja quanto ao
seu agravamento, há de facto um juízo valorativo sobre a realidade em causa
contrabalançada com o conteúdo apresentado na petição, a qual deverá (em
princípio) igualmente conter a identificação dos terceiros envolvidos.
Posto isto, é clara a preocupação jurídica em garantir
um sistema que prima pela segurança e paz jurídica, tendo claramente em
consideração ambas as posições jurídicas de todos os sujeitos que possam estar
envolvidos numa dada situação jurídica.
Mário Aroso de
Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2a Edição Almedina, 2016
Alexandra
Leitão, A Protecção Judicial dos Terceiros nos Contratos Da Administração
Pública, Almedina, 2002
Paulo Otero, Os
Contra-interessados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e
Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Acto Final de Procedimento
Concursal
Carolina Freitas,
24366