quarta-feira, 2 de novembro de 2016


Conceito e delimitação da figura dos Contra-interessados



Tendo em conta a conceptualização tradicional de relação juridico-administrativa em sentido bipolar - assente no relacionamento entre a Administração e os particulares na respectiva actuação administrativa, tendo em vista o interesse público - surge uma outra concepcão na função jurisadministrativa, como resultado de uma crescente actuação administrativa multipolar, devido aos efeitos reflexos que se podem fazer sentir na generalidade dos administrados.

Neste sentido, a ideia assente de administrado como sujeito, titular de direitos e deveres, essencialmente valorizada pela transição para o Estado Social, traz consigo algumas “precauções” jurídicas em garantir um sistema ambivalente, tanto no que toca à satisfação dos interesses da Administração como aos interesses dos particulares. De entre tais preocupações, é passível de verificar a existência de certas regras relativamente à actuação da Administração, como dos particulares, mas igualmente das posições subjectivas de terceiros conexamente afectos à mesma relação jurídica (entre Administração e administrados). Tais relações multilaterais reclamam uma tutela jurídica acrescida, e como tal justificam a legitimidade atribuída a terceiros que vejam as suas posições jurídicas ameaçadas, por força dos efeitos reflexos de determinadas actuações administrativas.

Assim, para efeitos de impugnação contenciosa são designados como contra-interessados, os terceiros que integrem a relação multilateral e como tal vêm as suas posições jurídicas afectadas, surge então a tal preocupação garantística, permitindo uma melhor prossecução do interesse público, e redução da litigiosidade em nome do Princípio da economia processual, preservando assim o efeito útil das decisões administrativas.

No domínio do contencioso dos actos administrativos, tanto nos processos de impugnação de actos administrativos, como nos processos de condenação à prática de actos administrativos, encontram-se em domínios de actuação no CPTA, os potenciais contra-interessados, nos artigos 57º e 68º/2, sendo tal legitimidade avaliada consoante o critério presente no artigo 10º/1, 3ª parte. Tal critério delimitativo presente no artigo 10º, pretende abarcar situações de terceiros titulares de interesses potencialmente contrapostos aos do autor desde que, integrados em situações jurídicas que possam ser afectadas pela eventual procedência de uma acção. Por conseguinte,  o artigo 68º reforça tal fundamento, no seu conteúdo igualmente delimitador, ao “restringir” às pessoas “que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”, e portanto indiciando um critério geral - “titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Podendo os contra-interessados tratarem-se de pessoas a quem a procedência da acção possa prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação contra a qual recorre o autor.

No entanto, tal intervenção  processual dos contra-interessados é condicionada por força da exigência legal de identificação ou citação por parte do recorrente na petição, sendo que em caso de ocorrer erro ou falta de identificação dos mesmos, poderá ser regularizada pelo tribunal, no entanto no caso de haver preterição da identificação, a consequência jurídica é mais penosa, já que configura tal situação ferida de ilegitimidade passiva, artigo 89º CPTA, e consequentemente obsta ao prosseguimento da causa. De facto, a imposição deste ónus ao autor, revela não só a preocupação por uma redução da litigiosidade, mas igualmente atentando a razões de ordem subjectiva quanto aos efeitos transversais que se façam sentir quanto aos contra-interessados, mas igualmente por se tratar do ente jurídico com mais contacto com a situação em causa, tendo consequentemente uma maior percepção dos interesses conflituantes em causa.

É passível de ser encontrada a sua evidência na lógica garantística do princípio geral do contraditório, decorrente do principio da tutela jurisdicional efectiva, como também do princípio da igualdade das partes sempre que envolva a possibilidade de lesão de direitos ou interesses legítimos de terceiros. Alicerçada a protecção dos contra-interessados, torna-se evidente o seu reflexo quanto à eficácia subjectiva do caso julgado, isto é ao efeito útil da decisão, já que a decisão que directamente prejudique terceiros não lhes poderá ser oponível, visto não lhes ter sido possibilitada a sua defesa no processo, ainda que seja reconhecida eficácia erga omnes a uma dada decisão, quem não seja chamada ao processo não poderá ser prejudicado por tal decisão (devido ao efeito directo da garantia dos direitos fundamentais acima referidos).

Como tal, é verificável um sistema que garante valores de ordem subjectiva como de ordem objectiva, garantindo os interesses de terceiros, mas igualmente a unidade do sistema jurídico mediante a resolução definitiva do litigio, e consequentemente a “paz jurídica”, combinada com razões de economia processual.

Ainda neste sentido, cabe ter presente que o sistema jurídico não é alheio a uma certa imposição de critérios legais delimitativos de terceiros que de facto se insiram no conceito de contra-interessados, seja através de interpretação da letra da lei, pela existência de interesses de terceiros que possam ser prejudicados, seja pelo carácter directo dos efeitos de uma dada decisão judicial. Mas tal não não basta em termos contenciosos e processuais, há que formular um juízo de prognose, o qual consiste essencialmente na avaliação pelo juíz, Ministério Público e até a entidade recorrida, do conteúdo constante na petição de forma a determinar o universo concreto de contra-interessados. Podendo ainda tal juízo incidir numa ponderação da projecção subjectiva que certos efeitos possam ter nas posições jurídicas de determinadas pessoas, seja quanto à sua alteração seja quanto ao seu agravamento, há de facto um juízo valorativo sobre a realidade em causa contrabalançada com o conteúdo apresentado na petição, a qual deverá (em princípio) igualmente conter a identificação dos terceiros envolvidos.

Posto isto, é clara a preocupação jurídica em garantir um sistema que prima pela segurança e paz jurídica, tendo claramente em consideração ambas as posições jurídicas de todos os sujeitos que possam estar envolvidos numa dada situação jurídica.







BIBLIOGRAFIA:

Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2a Edição Almedina, 2016

Alexandra Leitão, A Protecção Judicial dos Terceiros nos Contratos Da Administração Pública,  Almedina, 2002

Paulo Otero, Os Contra-interessados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Acto Final de Procedimento Concursal


Carolina Freitas,
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