domingo, 18 de dezembro de 2016

E Unibus Pluram: Acção Popular e Interesse em Agir[1]

Introdução
Este comentário visa o estudo do Acórdão nº 0549/15 relativo aos contratos de subconcessão, sendo que a nossa atenção irá incidir sobre a questão da extensão da legitimidade activa na protecção de interesses difusos e sobre o interesse em agir enquanto pressuposto processual autónomo. Assim, tentaremos estudar os aspectos mais relevantes destas duas temáticas e comentar a decisão do Supremo Tribunal Administrativo no caso em questão.

Matéria de Facto
Em primeiro lugar, cabe estabelecer os factos dados como provados que nos interessam para a abordagem das matérias supramencionadas. O Conselho de Ministros aprovou um despacho em 26 de Fevereiro de 2015 que determinou o início do processo de abertura ao mercado de exploração dos serviços públicos de transporte de passageiros prestados pela CARRIS e pelo ML, através de subconcessão. Esta decisão teve como justificação, entre outras razões, o cumprimento de reformas estruturais assumidas pelo Estado perante instâncias internacionais; sendo que estas reformas tinham sido provocadas pela situação de fragilidade económica em que o país se encontrava. Assim, foi iniciado um concurso público com vista à celebração de dois contratos de subconcessão que levou à instauração de uma providência cautelar destinada à suspensão da eficácia da Resolução do Conselho de Ministros. 

Matéria de Direito

Interesse Processual
A acção em questão levantou várias questões de direito, sendo que neste comentário iremos debruçar-nos apenas sobre a questão da legitimidade activa e do interesse processual dos requerentes.
Em primeiro lugar, cabe-nos perceber se existe verdadeiramente uma autonomia do interesse  enquanto pressuposto processual ou se este é absorvido pela legitimidade da parte. Em termos conceptuais, o interesse processual corresponde à necessidade que o autor tem de instaurar e prosseguir com uma acção para a tutela do seu direito. Dito de forma mais prática, o interesse processual pressupõe que é inevitável recorrer à via judicial por não restar ao indivíduo outro modo de satisfazer a sua pretensão.
Em segundo lugar, é preciso perceber que nem no processo civil nem no processo administrativo o interesse processual é referido explicitamente enquanto um pressuposto processual, sendo que a sua autonomização decorre de uma visão doutrinária.
Ora, com a exigência de um interesse em agir do autor pretende-se evitar que as pessoas sejam chamadas a juízo sem justificação e que os tribunais sejam sobrecarregados com acções que não revelam qualquer sentido útil. Desta forma, o interesse processual aparece como um complemento da legitimidade processual, dado que para justificar a intervenção do tribunal não basta a prova que o autor é titular do direito mas também de que o seu direito necessita da tutela judicial solicitada. REMÉDIO MARQUES considera que para se verificar o interesse em agir, a situação de carência de tutela tem de ser real, justificada e razoável.
Devido à sua relevância para a admissão da instauração da acção, a maioria da doutrina (TEIXEIRA DE SOUSA, MANUEL ANDRADE, ANTUNES VARELA) considera que o interesse processual é um verdadeiro pressuposto processual, sendo que a minoria da doutrina considera que este não deve ser autonomizado da legitimidade (PAULA COSTA E SILVA). Por nossa parte, consideramos que existe uma merecida separação do interesse processual em relação à legitimidade processual, visto que o interesse em agir assume-se como um filtro importante em favor da economia processual. Para além disso, apesar de não existir uma consagração expressa do interesse enquanto pressuposto no Contencioso Administrativo, a verdade é que o art. 39º faz-lhe menção directa – sendo que AROSO DE ALMEIDA até considera que este artigo é expressão autónoma do interesse enquanto pressuposto – e o art. 55º, nº1 faz-lhe menção indirecta – consoante o sentido dado às expressões “directo e pessoal”.
Sabendo o que é o interesse processual e aceitando a autonomia do mesmo, cabe-nos verificar se no caso em questão este estava preenchido. Ora, o argumento da CARRIS e do ML baseava-se no esgotamento dos efeitos da Resolução do Conselho de Ministros, dado que já tinha sido iniciado o concurso que levaria a uma cessação do interesse dos requerentes. Não podemos acolher esta interpretação. Tal como o STA refere, apesar do concurso já ter começado, os contratos em causa ainda não foram sequer adjudicados, pelo que os efeitos da Resolução ainda não foram esgotados. Desta forma, parece-nos incontestável que ainda existe uma necessidade efectiva de tutela judiciária dos requerentes que deve ser protegida, sendo que esta é real, justificada e razoável.

Legitimidade Activa
Por outro lado, os requeridos também invocam “que os requerentes carecem de legitimidade activa por não estar aqui em causa a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos que ancorem a instauração de qualquer ação popular”. Para fundamentar esta posição explicam que nenhum diploma prevê “a garantia constitucional da autonomia local” como um interesse susceptível de ser tutelado em sede de acção popular e que as subconcessões não afectariam a qualidade de vida dos habitantes de Lisboa, pelo que os requerentes não poderiam ter utilizado o expediente da acção popular. Cabe-nos então perceber a substância deste instituto e a extensão da legitimidade activa que advém do mesmo.
O direito de acção popular é um direito fundamental de participação política, consagrado no art. 52º, nº3 da CRP que vem dar guarida a um reforço das acções populares tradicionais e à introdução de acções populares ou colectivas destinadas à defesa de interesses difusos. Seguindo de perto JORGE MIRANDA, os interesses difusos correspondem a uma manifestação da existência ou do alargamento de “necessidades colectivas individualmente sentidas”; traduzem um dos entrosamentos específicos de Estado e sociedade; e implicam formas complexas de relacionamento entre as pessoas e os grupos no âmbito da sociedade política que, só podem ser apreendidos numa nova cultura cívica e jurídica.
Assim, os interesses difusos tratam-se de necessidades comuns a conjuntos mais ou menos largos e indeterminados de indivíduos que somente podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária. No fundo, estes interesses não podem ser vistos enquanto interesses públicos ou individuais, mas sim como uma figura híbrida que carrega uma dimensão individual e supraindividual. Desta forma, estes interesses configuram-se como estando dispersos por toda a comunidade, sendo que apenas a comunidade, enquanto tal pode prossegui-los, independentemente da determinação de sujeitos.
Para além da sua consagração constitucional, existe ainda a lei reguladora do direito de acção popular (Lei nº 83/95), que deve ser conjugada de forma activa com o art. 9º, nº2 do CPTA tendo em conta que os exercícios dos poderes de propositura e intervenção processam-se “nos termos previstos na lei”.
Em primeiro lugar, e antes de estudar a LAP, é importante perceber que o art. 9º, nº2 conduz a um “fenómeno de extensão de legitimidade” (VASCO PEREIRA DA SILVA, AROSO DE ALMEIDA), pois alarga a legitimidade processual a quem não alegue ser parte na relação material controvertida. Este artigo deve ser articulado com o art. 55º, nº1, alínea f) do CPTA que concede legitimidade para impugnar um acto administrativo a pessoas e entidades mencionadas no art. 9º, nº2 do CPTA ( tal como acontece com o art. 68º, nº1, alínea d) relativamente à condenação à prática de acto devido). Por fim, cabe-nos realçar o carácter exemplificativo do art. 9º, nº2 quanto aos bens que podem ser objecto da acção popular.
Quanto à LAP, vemos logo no art. 2º e 3º uma densificação do critério de legitimidade consagrado no CPTA e  no art. 12º, nº1 a possibilidade da acção popular revestir qualquer das formas de processo previstas pela lei processual administrativa (sendo que a acção popular não é em si mesma uma forma de processo). Outro aspecto muito importante é a introdução de adaptações ao modelo de tramitação normal por via dos arts. 13º e segs, que consagram um regime processual próprio para acções populares. O art. 14º chega a utilizar o instituto da representação para alargar os efeitos da acção, devido ao carácter comunitário que molda os interesses em causa.
Tendo isto em conta, cabe-nos analisar a legitimidade activa no caso em questão. Para isso, temos de partir das pretensões dos requerentes: (i) Assegurar a defesa de bens e direitos do Município de Lisboa;” “(ii) Promover a perseguição judicial de actos administrativos que ofendam o conteúdo da garantia constitucional da autonomia local” e “(iii) Assegurar a qualidade de vida dos habitantes de Lisboa, evitando alterações negativas no serviço público de transporte de passageiros”.
Ora, deve ter-se em conta que a análise da legitimidade de uma parte acaba por raramente resultar em excepção dilatória, visto que depois de muita tinta corrida entre a defesa das teses de Barbosa de Magalhães – que considerava que as partes seriam legítimas atendendo à relação controvertida tal como a configurara o autor -, e de Alberto dos Reis – que considerava que uma parte seria ilegítima caso não fosse o sujeito da relação material controvertida litigada -, o legislador acabou por consagrar a primeira no art 26º, nº3 do CPC.
Desta forma, “tem legitimidade activa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objecto da acção proposta o apresente em condições de nela figurar como autor” (AROSO DE ALMEIDA). Assim, só nos resta perceber se as diferentes pretensões do autor são enquadráveis na categoria conceptual de interesses difusos que atrás estudámos.
As pretensões apresentadas pelos requerentes apontam a falta de intervenção do Munícipio de Lisboa enquanto concedente, a defesa do património do Munícipio e a possível perda da qualidade de vida dos cidadãos derivada da concessão. Assim, concordamos com o STA quando este considera que não só é posta em causa a garantia constitucional da autonomia local e a defesa do património do município, como a alteração do serviço pode ter consequências profundas na qualidade do serviço e consequentemente, na qualidade de vida dos cidadãos. Parece-nos que estas situações são abrangidas pelo conceito de interesse difuso pois os interesses em questão assumem uma natureza supraindividual e consequentemente, são aptos à protecção por qualquer pessoa em razão da violação de preceitos constitucionais de legalidade e defesa da qualidade do serviço público em questão. Desta forma, acreditamos que o art. 9º, nº2 e o art. 55º, nº1, alínea f) se encontram preenchidos, ou seja, apesar de não existir uma lesão directa na esfera jurídica dos particulares, encontram-se em jogo interesses gerais e unitários da comunidade que atribuem legitimidade activa aos autores.

Acordão

Bibliografia
SILVA, Vasco Pereira da
- “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2º Edição, 2016
MIRANDA, Jorge
- “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, 5º Edição, 2012
ALMEIDA, Mário Aroso de
- “ Manual de Processo Administrativo”, 2º Edição, 2016
AMARAL, Jorge Augusto Pais de
- “ Direito Processual Civil”, 12º Edição, 2015
SOUSA, Miguel Teixeira de
- “ As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”
- “ Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2º Edição, 2013
MARQUES, João Paulo Fernandes Remédio
- “Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3º Edição, 2011
FREITAS, José Lebre de
- “Introdução ao Processo Civil”, 3º Edição,

 Tomás Martinho Baptista




[1] A expressão “errónea” é retirada do título de um ensaio de David Foster Wallace e brinca com a expressão E Pluribus Unum (de muitos,  um), invertendo-a (de um, muitos). Achamos que, apesar da expressão latina não ser correcta, a ideia é adequada ao papel desempenhado pelo actor popular.

Para uma aclaração da impugnabilidade de actos administrativos Revisão (sinóptica) da Literatura

ARGARIDA PEREIRA COSTA, n.º 22488, subturma 3

A impugnabilidade é o legado deixado pela antiga recorribilidade e cuja transição decorre do sedimento deixado pela acção de impugnação de actos administrativos recebida do antecedente recurso contencioso de anulação (vide Correia, Sérvulo, pp.12 e ss.; Amaral, Freitas do & De Almeida, Aroso, pp. 95-98 e Da Silva, Vasco Pereira, pp. 318 e ss.). A impugnabilidade traduz, por um lado, uma propriedade de segundo grau, i.e., trata-se de um qualificativo do conceito de acto administrativo que lhe está subjacente e, por outro, trata-se de um conceito relativo, porquanto ante um certo acto administrativo, o juízo sobre a sua impugnabilidade levará ora a uma resposta positiva, ora a uma resposta negativa. Em conformidade com a entrada em vigor do CPTA, opta-se por uma acepção restrita e homogénea (vide Coimbra, José Duarte, p.352), referindo-se sobremaneira a condições estruturais dos actos administrativos (artigos 51º a 54º CPTA insertos na Secção I do Capítulo II do Título III). Sendo assim, à luz do direito processual português, a impugnabilidade deve ser configurada enquanto pressuposto processual autónomo (ibid.)
Frisa-se que Acção Administrativa Especial está prevista nos artigos 46º e sgs. do CPTA, e a impugnação de actos administrativos está prevista no artigo 50º CPTA e, ademais, que antes da reforma do Contenciosos Administrativo de 2002 e 2004 não existia a impugnação de actos administrativos: existia outrossim o recurso de anulação (concebido como processo a um acto, Silva, p.332.).
A impugnabilidade, muito mais do que uma mera questão de natureza ou um traço substantivo dos actos administrativos, expande-se a todos os actos administrativos, que em virtude da sua situação, possam acarretar uma lesão ou afectar, de maneira imediata, posições subjectivas particulares. Aqui, importa conexionar esta abertura do conceito processual de acto administrativo com a natureza de direito fundamental consagrada no artigo 268º, n.º4 da Constituição (CRP, cf ainda artigo 202º e ss. e nºs 4 e 5 do artigo 268º CRP). Com efeito, a expansão da impugnabilidade dos actos administrativos, que passa a ser determinada em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares (artigo 51º, nº1 do CPTA) é a que melhor entronca no disposto no artigo 268º, n.º4 da CRP, “que estabelece um direito fundamental de impugnação dos actos administrativos lesivos dos particulares, no âmbito de um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado e de natureza predominantemente subjectiva, porque destinado a garantir a tutela integral e efectiva dos particulares.” (Silva, p.342).
Mais se acrescenta que o particular só dispõe da faculdade de impugnar os actos finaisdaí que, em rigor, não haja um ónus de impugnação por parte do particular (artigo 51º, nº3 CPTA) e, enfatiza-se, aampliação conceptual da impugnabilidade dos actos administrativos, pois esta passou a ser realizadaquando ocorra eficácia externa assim como lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares (artigo 51º, nº1 CPTA e artigo 268 nº 4 CRP).
É pois relevante acentuar que uma das alterações mais impressivas se traduz numa reconfiguração da noção geral de acto administrativo impugnável, já que, à luz do artigo 51º CPTA, são impugnáveis: os actos administrativos com eficácia externa, e dentro destes procede-se a uma referência especial àqueles, e cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.
Acompanha-se a perspectiva do Prof. Vasco Pereira da Silva ao apreciar como positiva a solução material adoptada pelo legislador em matéria de impugnabilidade nesse artigo do CPTA na referência que faz a actos com eficácia externa e a actos lesivos e também os argumentos que aduz acerca da formulação infeliz (Silva, pp. 344-345) do artigo 51º, por não expressar adequadamente que os critérios da eficácia externa e o da susceptibilidade de lesão de direitos são autónomos, com diversa natureza e função. Considera o mesmo autor como intolerável a subalternização do segundo critério ao primeiro, tanto do ponto de vista constitucional como de uma perspectiva quantitativa, na medida em que a maioria dos processos julgados nos tribunais administrativos correspondem a acções intentadas em defesa de direitos, além do que se trata de uma formulação que contende com a previsão da impugnação de actos carecidos de eficácia externa (artigo 54ºCPTA), desde que lesivos.
Não obstante, salienta-se que as alterações introduzidas pelo Anteprojecto do CPTA no que respeita a questões atinentes aos requisitos gerais do regime da impugnabilidade dos actos administrativos (actos confirmativos, actos ineficazes e legitimidade), visaram, sobretudo, ampliar a tutela impugnatória dos particulares, mas igualmente “adequar à visão doutrinal e à prática jurisprudencial e bem assim às alterações contidas no Projecto do novo Código de Procedimento Administrativo (NCPA), outras situações que não estavam suficientemente clarificadas no CPTA.” (Barbosa, p.375).
No que respeita às condições internas de impugnabilidade (em que se quadra a impugnabilidade em sentido restrito e homogéneo), são os requisitos estruturais que um acto administrativo deverá ostentar para que seja susceptível de ser impugnado jurisdicionalmente. No que concerne às condições externas (no âmbito da impugnabilidade em sentido lato e heterogéneo), reportam-se aos pressupostos processuais alheios ao acto, conquanto face aos quais a acção de impugnação de actos administrativos manifeste especialidades. Ao nível das denominadas condições externas de impugnabilidade e no âmbito dos designados critérios especiais de legitimidade activa para a impugnação dos actos administrativos (Almeida: 2010, pp.221-222) vertidos no artigo 55º do CPTA o Anteprojecto veio introduzir duas alterações, ambas com efeitos restringentes (Coimbra, p.367), a saber: a legitimidade do Ministério Público para a impugnação dos actos administrativos em sede de acção pública enquanto confinada à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº2 do artigo 9º (de resto como impõe a nova redacção dada ao artigo 16º da Lei nº 83/95)a legitimidade dos órgãos para impugnar actos de outros órgãos de uma mesma pessoa colectiva pública enquanto limitada a actos que alegadamente comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas aos primeiros para a prossecução de interesses pelos quais esses órgãos sejam directamente responsáveis. Segundo José Duarte Coimbra só a segunda alteração é verdadeiramente inovadora, porquanto segue ao arrepio da tradição portuguesa de configurar a acção pública em moldes não-limitados e representa “mais um dado de enfraquecimento do papel do Ministério Público no contexto do direito processual administrativo português” (Coimbra, p.369).
legitimidade activa para a impugnação de actos administrativos está prevista no artigo 55º CPTA, sendo os contra-interessados obrigatoriamente demandados (artigo 57º) CPTA, sendo susceptíveis de ser impugnados actos com carácter meramente confirmativo (artigo 53º CPTA), os actos administrativos ineficazes (artigo 54º CPTA) e os actos de indeferimento expresso (artigo 51 nº4 CPTA).
Destaca-se que se passa a delimitar o contencioso administrativo em virtude da sua função administrativa e não do poder administrativo, o que está na génese da ampliação do âmbito da justiça administrativa, porquanto esta passa a incidir sobre actos da função administrativa e não só sobre os actos de autoridade, controlando doravante as relações jurídicas administrativas para além das relações de poder, abandonando-se, assim, a infância difícil (SILVA: 1997, p.37) do Direito Administrativo onde prevaleciam as regras de privilégio em proveito dos órgãos administrativos.
Outra nota importante a propósito desta reflexão, necessariamente sucinta, concerne ao abandono da ideia da definitividade horizontal graças à extensão da impugnabilidade, dado que, passam a ser susceptíveis de apreciação os actos procedimentais. Diga-se que uma tal exigência de definitividade horizontal se encontrava ferida deinconstitucionalidade, até porque esse requisito deixou de ser exigido desde a revisão constitucional de 1989. Com efeito, os actos procedimentais são passíveis de impugnação autónoma (artigo 51º, nº1). Ainda assim a não impugnação do acto procedimental não impede a possibilidade de se impugnar a decisão final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento (artigo 51º, nº3): o particular pode impugnar desde o início essa actuação ou então aguardar e impugnar aquando da decisão final do procedimento.
Enfatiza-se também a consagração de um efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo (artigo 59º, nº4 CPTA) o que constitui um benefício para o particular já que se esteoptar por esta viaab initio, faz com que o prazo para a impugnação contenciosa só volte a correr supervenientemente à decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo. O particular pode optar se pretende utilizar uma garantia graciosa ou aceder, de imediato, ao tribunal, não tendo de aguardar pela decisão da administração: pode, por conseguinte, proceder a uma impugnação contenciosa ou recorrer às providências cautelares.
Em jeito de síntese e pondo a tónica nas alterações mais significativas no que a esta matéria diz respeito, assinala-se: aproximação do conceito processual de “acto impugnável” ao conceito substantivo/procedimental de “acto administrativo”, ainda que, deliberadamente, não exista uma plena coincidência entre ambos, na medida em que aquele primeiro conceito abrange também decisões sem eficácia externa; na impugnação de actos de actos administrativos o prazo é aumentado para 3 meses (alínea b) do n.º 2 do artigo 58 º CPTA). É também conferida a possibilidade de impugnação após o decurso deste prazo, desde que não tenha expirado o prazo de um ano, em determinados casos, designadamente: o autor ter sido induzido em erro pela conduta da Administração; se esse erro for desculpável em decorrência da ambiguidade do quadro normativo aplicável; caso se tenha verificadouma situação de justo impedimento (artigo 58º, nº 4, do CPTA).Mais ainda: a impugnação administrativa do acto suspende o prazo de impugnação contenciosa conquanto não impeça o interessado de recorrer a ela na pendência da impugnação administrativa (n artigo 59º, n.ºs 4 e 5 CPTA); o conceito de definitividade é abandonado, permitindo a impugnação de qualquer acto com eficácia externa, independentemente de se encontrar inserido num procedimento administrativo (artigo 51º, n.º1 CPTA); a ampliação do objecto da acção pode abranger, em acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo, novos actos perpetrados em sede do mesmo procedimento, ou, tratando-se de um acto pré-contratual, ao contrato que venha a ser celebrado na pendência do processo (artigo 63º do CPTA); Limitação da legitimidade activa para a impugnação de decisões proferidas por outros órgãos da mesma pessoa coletiva, restringindo-a à impugnação de decisões passíveis de comprometer as condições do exercício decompetências legalmente conferidas ao órgão impugnante para a prossecução de interesses pelos quais ele seja directamente responsável; Alteração e clarificação da data de início dos prazos de impugnação, nomeadamente reforçando-se a ideia de que o momento relevante é o da produção de efeitos do acto impugnado e prevendo-se que a notificaçãoao mandatário do interessado também releva para desencadear o prazo para a impugnação do acto notificado.
Em suma, impugnação de actos administrativos reveste uma importância central no âmbito docontencioso administrativo, desde logo porque a impugnação de actos administrativos continua a figurar como primeiro pedido passível de ser formulado junto dos Tribunais Administrativos.



Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável”, in: Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, II, Lisboa: FDUL, 2006.
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra: Almedina, 2010.
AMARAL, Freitas do & ALMEIDA, AROSO de, Grandes Linhas de Reforma Do Contencioso Administrativo, 3ª ed., Coimbra: Almedina.
ANDRADE, Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 13ª ed., Coimbra: Almedina, 2014
BARBOSA, Benjamim, “A Revisão dos requisitos gerais do regime da impugnabilidade dos actos administrativos (actos confirmativos, actos ineficazes e legitimidade) no Anteprojecto do CPTA, in: GOMES, Carla Amado, NEVES, Ana Fernanda & SERRÃO, Tiago (Coord.) Anteprojeto de Revisão do Código de Processo Nos Tribunais Administrativos E do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa: AAFDL, 2014.
COIMBRA, José Duarte, “A impugnabilidade de atosadministrativos no Anteprojeto de Revisão do CPTA”, in: GOMES, Carla Amado, NEVES, Ana Fernanda & SERRÃO, Tiago (Coord.) Anteprojeto de Revisão do Código de Processo Nos Tribunais Administrativos E do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, Lisboa: AAFDL, 2014.
CORREIA, Sérvulo, O Recurso Contencioso no Projecto de Reforma: Tópicos Esparsos, in: CJA, n.º20, Março/Abril, 2000.
SILVA, Vasco Pereira daPara um Contencioso Administrativo dos Particulares – esboço de uma teoria subjectiva do recurso directo de anulação, Coimbra: Almedina, 1997.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2009.