quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O Recurso Hierárquico Necessário e a sua constitucionalidade

O Recurso Hierárquico Necessário e a sua constitucionalidade
Este post tem por objecto a análise sobre a (in)admissibilidade do recurso hierárquico necessário face ao regime do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e da Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente sobre a constitucionalidade deste instituto face à Reforma de 2003 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).

Segundo o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o recurso hierárquico ‘’consiste no meio de impugnação de um acto administrativo que tenha sido praticado por um órgão subalterno, perante o respectivo superior hierárquico, a fim de obter deste a revogação, modificação ou substituição do acto recorrido.”[1].

De acordo com o artigo 185º nº1 do CPA, os recursos hierárquicos podem ser necessários ou facultativos, sendo que a regra geral é a da faculdade (art. 185º nº2 CPA), não constituindo por isso o recurso hierárquico, na actualidade, um passo obrigatório para recorrer à via contenciosa.
No contencioso administrativo anterior à Reforma, o acesso à justiça administrativa surgia limitado, uma vez que um acto administrativo só poderia ser impugnado se fosse, simultaneamente, definitivo e executório. Esta definitividade era, segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral tripartida em vertical, horizontal e material.

Assim, para que o acto fosse impugnável era necessário que este tivesse como autor o órgão superior máximo (verticalidade). Se o acto fosse praticado por um subalterno, a impugnação contenciosa do acto administrativo estava dependente da impugnação administrativa em qualquer das suas formas – reclamação, recurso hierárquico ou recurso tutelar. Relativamente à horizontalidade, só se consideravam impugnáveis os actos finais do procedimento administrativo. E, por último, só seriam impugnáveis os actos que regulavam o direito aplicável no caso individual e concreto (materialidade).

No entanto, com a revisão da CRP de 1989 a impugnabilidade de um acto administrativo deixou de estar sujeita a esta noção de acto ‘’definitivo e executório’’ e passou a estar em vigor o critério de ‘’acto lesivo de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares’’, segundo o artigo 268º nº4 CRP. Esta alteração, que visou essencialmente tutelar o acesso à justiça administrativa, acabou por criar alguma discussão na doutrina, uma vez que a eliminação das características da definitividade e da executoriedade do acto administrativo levou a que alguns considerassem como inconstitucionais as normas que condicionavam a sua impugnação contenciosa a uma prévia impugnação administrativa obrigatória. A não exigência da definitividade do ato administrativo permitiria por isso o acesso imediato à via contenciosa, tendo em conta a lesividade do mesmo.

Desacompanhado pela jurisprudência e pela maioria da doutrina, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que após a revisão de 1989, o recurso hierárquico necessário passou a ser inconstitucional. Isto porque, em primeiríssima instância, a CRP deixou de o consagrar no momento da revisão. Além do mais, se assim não se considerasse, estar-se-iam a violar vários princípios constitucionais, tais como o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º/4 CRP), o princípio da separação entre a Administração e a Justiça (arts. 111º, 202º e ss., 266º e ss. CRP), o princípio da desconcentração administrativa (art. 267º nº2 CRP) e, por último, o princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº4 CRP).

Por outro lado, autores como Vieira de Andrade, defenderam que a exigência de impugnação administrativa antes da impugnação contenciosa não é de maneira alguma inconstitucional, uma vez que essa exigência não viola o artigo 268º nº4 CRP. Para a maioria da doutrina, que continuava a considerar a necessidade da tripla definitividade,, o acesso ao contencioso previsto no artigo 268º nº4 não era negado aos particulares, simplesmente ficaria sujeito ao ónus de impugnação administrativa prévia.

Na opinião do Professor Mário Aroso de Almeida, cabe à lei ordinária a regulação do processo administrativo e os respectivos requisitos a que este está sujeito. Deste modo, ‘’desde que não haja qualquer condicionamento excessivo, desproporcionado e ilegítimo de acesso à justiça administrava, não há qualquer inconstitucionalidade’’[2].

A posição destes últimos autores é acompanhada pela jurisprudência. No acórdão nº 499/96, do Tribunal Constitucional (TC), que considerou que o recurso hierárquico não é era inconstitucional pode ler-se: “Não se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4 da Constituição. Nesta situação, a precedência de recurso hierárquico tem como efeito determinar o início do prazo para a interpretação de recurso contencioso, sem o restringir nem acarretar a sua inutilidade.’’[3]

Ainda que seja unânime na doutrina que a figura do recurso hierárquico necessário, como regra geral, foi afastada pelo CPTA na Reforma de 2003, vigorando na actualidade um regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa, isso não significa que esta solução tenha agradado a todos os pensadores de Direito. Por exemplo, o Professor Diogo Freitas do Amaral criticou esta opção do legislador, por considerar que a eliminação da figura do recurso hierárquico necessário teria como consequência prática um ‘’mar’’ de processos nos tribunais administrativos que, associado à possibilidade de providências cautelares, levará à paralisação da Administração Pública.

Se, por um lado, o Professor Mário Aroso de Almeida entende que se deve passar a admitir o recurso hierárquico necessário quando o legislador tenha tomado tal decisão de forma consciente e deliberada[4] e, assim sendo, as normas do CPA relativas ao recurso hierárquico devem ser tidas em conta através de uma interpretação actualista, por outro lado, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que todo o regime do recurso hierárquico necessário caducou (e não foi revogado pelo CPTA), pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que o justificava, uma vez que a impugnação administrativa  de um acto já não é condição necessária para a posterior impugnação a nível contencioso.

Nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, ‘’o legislador da reforma veio afastar, de modo expresso e inequívoco, a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa’’[5]. Isto porque o artigo 51º nº1 CPTA estabelece que são impugnáveis todas as decisões da Administração Pública que sejam susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou, genericamente, que o acto que se pretende impugnar seja de eficácia externa. Também do artigo 59º nº4 e 5 CPTA decorre a regra geral da desnecessidade da impugnação administrativa para aceder à via contenciosa, pois este artigo consagra que o recurso faz suspender o prazo de impugnação, o que não significa que o particular não possa impugnar contenciosamente sem efectuar o recurso, podendo mesmo fazê-lo na pendência da impugnação administrativa.

Assim, relativamente às regras especiais, dispersas em diplomas avulsos, que continuam a consagrar impugnações administrativas necessárias, a doutrina diverge no que concerne ao seu confronto com o novo regime geral do CPTA, após a reforma.

Para os Professores Mário Aroso de Almeida, Vieira de Andrade e Marcelo Rebelo de Sousa, ainda que a Reforma de 2003 tenha revogado, de forma geral, o recurso hierárquico necessário, são de considerar as disposições legais específicas que, de um modo claro, fazem depender a impugnação contenciosa  de um acto da prévia impugnação administrativa, tendo por isso de se considerar estas disposições especiais válidas e ainda em vigor, uma vez que as normas especiais prevalecem sobe a norma geral que consta no CPTA. Assim, quando nada é dito, entende-se que o acto pode ser imediatamente impugnado perante os tribunais administrativos. No entanto, nos casos em que a legislação especial instituía impugnações administrativas, estas devem ser observadas.

Esta interpretação restritiva ou minimalista do novo regime do CPTA tem como principais fundamentos ‘’evitar que as pessoas (…) sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, para organizarem, sob cominação de uma sanção grave, a defesa dos seus interesses, numa situação em que a situação da parte contrária (no caso, o impugnante) o não justifica” e ainda de “não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional’’[6]. Para estes autores continua, portanto, a fazer sentido a distinção entre o recurso hierárquico necessário e o facultativo, estando o legislador livre de exigir a definitividade vertical do acto como pressuposto do recurso contencioso ou não, desde que essa exigência não seja desproporcionada nem arbitrária, nem viole o princípio fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (arts.  20.º e 268.º nº4 CRP).

Já assim não pensam os Professores Vasco Pereira da Silva e Paulo Otero. Para estes autores, o legislador da reforma afastou, de forma expressa e inequívoca, a existência de recurso hierárquico necessário, independentemente da sua fonte, afectando tanto as normas gerais como as especiais. Desta forma, é sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa, passando todas as garantias administrativas a ser facultativas.

Defende o Professor Vasco Pereira da Silva que, após a reforma, ao desaparecer por completo no CPTA qualquer referência à necessidade de prévia impugnação administrativa para impugnar o acto judicialmente, a figura do recurso hierárquico necessário foi definitivamente afastada pelo legislador, caducando por isso não só as disposições gerais do CPA que regulam esta figura, como também qualquer lei avulsa que consagre a obrigatoriedade de recurso hierárquico ou outra garantia administrativa.

Para o Professor, que ao contrário de autores como Vieira de Andrade e Aroso de Almeida, faz uma interpretação ampla ou maximalista do novo regime, não é possível compatibilizar a regra geral de admissibilidade de acesso à justiça    com as regras especiais que manteriam a exigência da prévia impugnação administrativa para se poder impugnar um acto judicialmente. Se a razão de ser dessa exigência era admitir o recurso contencioso, e se a lei de processo já não o exige, então a exigência não mais se mantem. Seria o mesmo que consagrar o recurso hierárquico necessário desnecessário. E isto vale tanto para as disposições gerais como para as regras especiais, uma vez que se o CPTA revogou as regras gerais, mas não as especiais, tem de se concluir que, anteriormente à reforma, estas últimas regras não eram de facto especiais, mas apenas uma confirmação da regra geral e, assim, não careciam de uma revogação expressa, uma vez que a revogação da regra geral implica, ainda que implicitamente, a revogação de todas as outras regras que se limitavam a confirmar o seu regime jurídico.

Relembro que o Professor regente nem sequer entende que existe uma revogação do regime do recurso hierárquico necessário, tratando-se antes de um caso de caducidade das regras especiais, por falta de objecto. Se a razão de ser da necessidade prévia das garantias era garantir o acesso ao juiz, isso significa que a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que essas normas caducam.

Mais aponta o Profesor que, se do ponto de vista constitucional já era difícil considerar que a exigência do recurso hierárquico necessário não era inconstitucional antes da Reforma, agora é mesmo ‘’missão impossível’’ justificar que após a mesma, pudessem existir excepções ao regime agora consagrado, criando um contencioso privativo de certas categorias de actos administrativos. Assim, diz o Professor Vasco Pereira da Silva, nada seria mais inútil e despropositado do que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação dos actos administrativos. 

Com o devido respeito, entendo que, após a reforma, o recurso hierárquico necessário não se tornou inconstitucional e sigo a posição do Professor Mário Aroso de Almeida, segundo o qual, em regra, não é necessário impugnar previamente o acto a título administrativo para se poder recorrer aos meios contenciosos, o que não era possível antes da reforma. Assim, à partida, o recurso hierárquico será facultativo, tal como resulta do artigo 185º nº2 CPA, e será necessário nos casos em que a legislação especial consagre a obrigatoriedade de impugnação administrativa anterior à impugnação contenciosa. Nestes casos, a pretensão do autor que não impugne previamente o acto a título administrativo deve ser recusada uma vez que ‘’a lei não lhe reconhece o interesse processual que, no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter tentado infrutiferamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.’’[7]

Deve por isso fazer-se uma interpretação restritiva do regime do CPTA após a reforma, de maneira a que se entenda que a regra do recurso hierárquico facultativo é aplicada, segundo os artigos 51º nº 1 e 59º nº 4 e 5 CPTA, aos actos administrativos com eficácia externa, especialmente àqueles cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos, não estando por isso abrangidas por esta regra de facultatividade as disposições legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias.


Bibliografia:
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Cadernos Jurídicos Administrativos;
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo Coimbra, Almedina, 2014;
AMARAL, DIOGO FREITAS DO, Considerações Gerais Sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Trabalhos preparatórios in Reforma do Contencioso Administrativo;
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª ed., Coimbra 2009;
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2016;
SOUSA, MARCELO REBELO DE e MATOS, ANDRÉ SALGADO DE, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2009.



Marta Stock da Cunha
Aluna nº 23704



[1] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, pp. 211-218.
[2] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in Cadernos Jurídicos Administrativos, nº34, p.73.
[3] Para consulta do texto integral: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960499.html
[4] Note-se que o Código Civil, no art.º 7.º nº3 dispõe que “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.
[5] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 349 e 350
[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 306 e 307

[7] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 306

sábado, 25 de novembro de 2017

A admissibilidade da Arbitragem no Contencioso Administrativo - Confidencialidade versus Publicidade e Interesse Público

Ž  Generalidades

            A arbitragem é um instrumento de resolução de conflitos em que os sujeitos da relação jurídica estabelecem de comum acordo um ou mais árbitros especializados a dirimir uma determinada controvérsia, resultando daí uma decisão com a natureza de sentença, com força de caso julgado. Segundo o Professor Menezes Cordeiro, o conceito de Arbitragem reconduz-se à situação jurídica decorrente da remissão, pelas partes, da composição de um litígio, para a decisão de terceiros.[1]
            As convenções de arbitragem têm a natureza de negócios jurídicos bilaterais, ou seja, são contratos, quer estejam inseridas como cláusulas compromissórias em contratos de conteúdo mais abrangente quer sejam estipuladas de modo autónomo, como sucede com os compromissos arbitrais. Os poderes atribuídos aos árbitros são poderes jurisdicionais.
            A questão da natureza jurídica da arbitragem é controversa, pois parte da doutrina a classifica como um meio de resolução de conflitos do foro convencional, enquanto que a outra parte a classifica como um exercício da função jurisdicional.
Relativamente à doutrina que a classifica como um exercício da função jurisdicional, o Professor SÉRVULO CORREIA diz que "ao integrar os tribunais arbitrais entre os outros tribunais, a Constituição qualifica implicitamente o desempenho da actividade dos árbitros como um caso de exercício de uma função estadual por particulares” (art. 209º nº2 da Constituição da República Portuguesa). Seguindo esta posição, surge também FAUSTO DE QUADROS, segundo o qual “o facto de a Constituição expressamente qualificar esses órgãos de “tribunais” e de os incluir num artigo que tem como epígrafe “Categorias de tribunais”, resulta, a nosso ver sem margem para dúvidas, que os tribunais arbitrais são em Portugal órgãos jurisdicionais ao mesmo nível que os tribunais do Estado[2]. O que quer dizer que, tanto uns como os outros exercem, com igual dignidade, função jurisdicional do Estado assim como o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º CRP.
Por outro lado, JOÃO CAUPERS defende que se trata de “uma técnica de solução de conflitos de natureza convencional porque exige um acordo entre as partes e que essa técnica é quási-judicial garantindo uma solução para o litígio obrigatória para as partes, uma vez que os árbitros são verdadeiros juízes, embora não façam parte da justiça do Estado e sejam escolhidos pelas partes”, indo contra as opiniões atrás expostas.
Por fim, subscrevendo uma posição intermédia, JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL vem dizer: “Por um lado, a sua base assenta num contrato de convenção (a convenção de arbitragem). Por outro lado, uma vez que constituído o tribunal arbitral, este funciona como um verdadeiro tribunal, configurando, nesta medida, uma alternativa aos tribunais de jurisdição pública para a resolução de litígios entre as partes.”.

A via da arbitragem comporta vantagens evidentes, sendo a primeira o facto de o processo ser mais célere do que a Justiça prestada pelo Estado; em segundo lugar o recurso à arbitragem permite recorrer  especialistas que não desempenham funções jurisdicionais; em certos casos, e tendo em conta o regime processual de custas, pode ser uma opção menos dispendiosa; também se pode dizer que desafoga os tribunais estaduais, paralisados com o número de processos pendentes; é menos sensível a certos expedientes dilatórios; garante a confidencialidade do andamento processual e das decisões finais; atribui às partes a ultima palavra na escolha dos decisores e privilegia a primazia da substancia sobre a forma, em claro benefício da Justiça material, uma vez que vai, mais facilmente, ao fundo das questões[3].


Ž  A Arbitragem no Contencioso Administrativo

Vamo-nos circunscrever a questões de arbitragem interna ou doméstica. E cumpre, desde logo, atender à questão de saber quando é que se podem suscitar questões e direito público no âmbito da arbitragem. Há que diferenciar três situações:

1.     litígio de direito publico como objeto principal de um processo arbitral;
2.     questões incidentais de Direito Publico em litígios arbitrais de Direito privado;
3.     e questões prejudiciais de Direito publico em litígios arbitrais de Direito privado[4].

Não vamos entrar em detalhe relativamente às opções que surgem no âmbito de litígios de Direito privado, mas importa mencionar que as entidades públicas podem, com base o art. 5º/1 da LAV, submete-los à arbitragem, sendo a resolução totalmente sujeita ao regime da mencionada Lei.
Estando em causa um litígio de Direito público, a sua arbitrabilidade depende da existência de uma lei específica habilitante, o que significa que a LAV não é uma norma autorizativa da sujeição destes litígios à arbitragem. A Lei de Arbitragem Voluntária, no seu artigo 1º/5, permite que lei especial autorize o Estado ou outras pessoas colectivas de Direito Público a celebrar convenções de arbitragem, e essa lei, hoje, é o CPTA. E embora a LAV condicione desta forma a capacidade do Estado e de outras pessoas colectivas de direito público, a verdade é que encontramos no texto dessa Lei todo um conjunto de preceitos que revelam que o regime de arbitragem voluntária também se aplica diretamente[5].
Os arts. 180º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) regulam a matéria da arbitragem no Contencioso Administrativo, sendo complementados pelas disposições constantes da Lei 63/2011, ou Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), conforme o disposto no art. 181º do CPTA. De acordo com este artigo o tribunal arbitral funciona nos termos da lei sobre a arbitragem voluntária. No entanto, deve entender-se que as normas especiais sobre a disciplina da arbitragem no âmbito administrativo prevalecem sempre sobre as normas da LAV[6], como tal a arbitragem de Direito Administrativo tem de ser vista como devendo estar sujeita a um regime especial dentro do regime geral da arbitragem[7]. Com efeito, as disposições sobre a capacidade do Estado para celebrar convenções de arbitragem e arbitrabilidade (180º, 184º e 185º CPTA), e ainda as disposições dos arts. 182º, 183º e 186º do CPTA.
O art. 182º cria o instituto da arbitragem potestativa, que se distingue da arbitragem necessária, e é exclusiva da arbitragem do contencioso administrativo. Diz respeito a arbitragem voluntária em que uma das partes – o Estado ou outra pessoa colectiva de Direito publico – declara antecipadamente a sua aceitação da arbitragem como meio de resolução de conflitos, e em que o início do processo arbitral está apenas dependente da vontade do administrado.
No que concerne às matérias que podem ser submetidas à arbitragem, o art. 180º nº1 do CPTA reserva a possibilidade de constituição de um tribunal arbitral para dirimir conflitos que respeitem a (fora os casos previstos em lei especial):

a.     Contratos, incluindo a apreciação de actos administrativos relativos à respectiva execução;
b.     Responsabilidade civil extracontratual, incluindo a efetivação do direito de regresso – abrange também, hoje mais clarificado, as indemnizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas;
c.     Actos administrativos – prescreve-se uma cláusula geral de arbitrabilidade da validade dos actos, desde que a lei não disponha do contrário
d.     Litígios emergentes de relações jurídicas de emprego público - excepto quando estão em causa direitos indisponíveis ou quando estes lítigos resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional;

Importa apontar, que, independentemente de certo caso se enquadrar numa destas alíneas, o nº2 dita que não pode ser constituído tribunal arbitral nos casos em que existam contra-interessados, salvo se estes aceitarem o compromisso arbitral, o que previne as situações em que o recurso à arbitragem seria feito com o intuito de impossibilitar a intervenção dos eventuais contra-interessados no litígio. 
Quanto à arbitrabilidade de matéria de Direito público, é, no geral, admitida como foi exposto.
Cumpre agora proceder à analise da questão objecto do titulo da publicação, atentando a um aspecto mais específico dentro da matéria abordada.


Ž  Transparência da administração pública versus confidencialidade da arbitragem

Como vimos, uma das características da arbitragem, é a sua confidencialidade. Conforme resulta do artigo 30º, nº5 e 6 da LAV, existe um dever dos árbitros, e das entidades que promovam as arbitragens institucionalizadas, ao sigilo sobre todas as informações obtidas, bem como acerca dos documentos. Esta privacidade impõe-se então quanto ao litigio em si, quanto aos factos nele relevados, quanto às partes que nele intervenham e quanto à solução.
Uma das vantagens tradicionalmente atribuídas á arbitragem voluntária é a da discrição. As partes recorrem, muitas vezes à resolução do seu litigio por via da arbitragem porque pretendem uma solução justa, rápida e discreta, especialmente no domínio comercial, daí que, embora a Lei Modelo de UNCITRAL nada diga quanto ao caráter confidencial do processo de arbitragem, algumas leis nacionais tenham consagrado este princípio, até porque, a confidencialidade na arbitragem era respeitada espontaneamente, por razoes éticas, deontológicas ou até, de educação – a arbitragem “é coisa de Senhoras e Cavalheiros, no mundo dos negócios[8]. Em muitas ordens jurídicas como a inglesa ou suiça, em que a lei não inclui nenhuma disposição sobre a confidencialidade, a jurisprudência é clara em considerar que o acordo das partes quanto a uma convenção de arbitragem envolve implicitamente uma estipulação de confidencialidade.
Existem, desde logo, duas excepções no artigo 30º da LAV à confidencialidade arbitral: a defesa dos direitos e o dever de denúncia. Deve ser sempre reconhecido às partes o direito de utilizar a sentença arbitral para fazer valer os seus direitos através dos tribunais estaduais, o que implica a necessidade de a sentença adquirir a mesma publicidade que as sentenças de tribunais estaduais transitadas em julgado que sejam titulo executivo.
Já no que concerne à Administração Pública, é comum a enunciação de um principio de transparência na sua actuação. Embora os contornos identificados por uns e outros autores sejam relativamente fluidos.
Neste sentido se pronunciou, SÉRVULO CORREIA, que menciona que os direitos à informação procedimental e ao acesso a arquivos e registos administrativos “são, na verdade, duas diferentes concretizações de um mesmo princípio geral de publicidade ou transparência da administração. (…) Ambos se conjugam em torno do propósito de banir o ‘segredo administrativo’”. Para VIEIRA DE ANDRADE, uma das três finalidades principais do dever constitucional de fundamentação dos atos administrativos é justamente “o alargamento da publicidade administrativa, sobretudo na dimensão informativa e participativa, no plano das relações com os particulares interessados, mas ainda numa dimensão de transparência ‘ecológica’, ao nível da relação da comunidade global[9].
Sendo o Estado de Direito caracterizado então pela observância de princípios de transparência no domínio da organização e da actividade da Administração Pública, e pelo direito de acesso da generalidade dos cidadãos aos documentos administrativos, consagrado no Código de Procedimento Administrativo (CPA) e na lei 65/93 de 28 de agosto, surge um problema de incompatibilidade entre o regime de confidencialidade das decisões arbitrais com o direito de acesso publico aos arquivos e com a publicidade e transparência que caracterizam a actividade administrativa.
Reconhecendo esta questão, a Direção da Associação Portuguesa de Arbitragem propôs ao Governo que introduzisse um preceito, na revisão do CPTA de 2015, que atendesse a esta particularidade necessária para que as arbitragens de direito administrativo não suscitassem problemas desta ordem e as alterações ao CPTA vêm ao encontro desta proposta.
O artigo 185º-B do CPTA obriga a que as decisões proferidas por tribunais arbitrais sejam obrigatoriamente publicadas. O preceito aplica-se, no entanto, apenas às decisões transitadas em julgado, ou seja, as decisões arbitrais definitivas, das quais não caiba recurso para os tribunais estaduais, que produzam efeitos que não se resumam ao próprio processo, ou seja, produzam caso julgado material – o que quer dizer que as decisões proferidas ao longo do processo estão fora do âmbito deste regime.
Como relacionar então este regime, com o regime de confidencialidade (deixado intocado) plasmado no artigo 30º/5 da LAV, ou apenas a limitação quanto à publicação das decisões do nº6?
Segundo o advogado JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, todo o regime de confidencialidade é afastado em matéria de arbitragem administrativa, isto é, considera que a obrigação de sigilo dos árbitros, das partes e dos centros de arbitragem desaparece, uma vez que “os limites à publicidade da decisão arbitral são um corolário desse regime, e não faz sentido manter a obrigação de sigilo quando a lei passou a prescrever que a totalidade da decisão deve ser publicitada[10].
Em modo de conclusão, quando uma das partes envolvidas numa arbitragem é pública, a confidencialidade é estranha à defesa do interesse público e à necessária transparência. É necessário ter também em conta que o injustificado segredo pode acabar por lançar dúvidas sobre a qualidade das decisões e sobre a sua justiça[11]. Além disso, a exigência respeitante à publicidade das decisões arbitrais permite o acesso e o correspondente escrutínio das decisões arbitrais. O que possibilita a uniformização das soluções adotadas, potenciando um efeito replicador desejável.




Raquel Catela Magalhães
nº26172


[1] António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem – Comentário à Lei 63/2011 de 14 de dezembro, Almedina, 2015;
[2] Fausto de Quadros, Linhas gerais da reforma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos em matéria de arbitragem, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, APA, Anual, nº7 – 2014;
[3] António Barreto Menezes Cordeiro, A consolidação e a expansão da arbitragem, Revista Vida Judiciária, março/abril, 2016;
[4] Paulo Otero, Arbitragem interna de litígios de Direito público: a publicização da arbitragem interna de Direito Privado, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Anual, nº5, 2012;
[5] José Robin de Andrade, Publicidade e Impugnação de decisões arbitrais em matéria admnistrativa, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, APA, Anual, nº7 – 2014;
[6] Luis Cabral de Moncada, “A lei especial prevalece sempre sobre a geral.” Modelos alternativos de justiça: a arbitragem no direito administrativo In: O direito - A. 142, nº 3 (2010), Lisboa, 2010;
[7] Fausto de Quadros, Linhas gerais da reforma do Código de Processo nos Tribunais Administrativos em matéria de arbitragem, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, APA, Anual, nº7 – 2014;
[8] António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem – Comentário à Lei 63/2011 de 14 de dezembro, Almedina, 2015;
[9] Débora Melo Fernandes, O Princípio da Transparência Administrativa: Mito ou realidade?;
[10] José Robin de Andrade, publicidade e Impugnação de decisões arbitrais em matéria administrativa – (o Projecto de revisão do código de processo dos tribunais administrativos e a nova LAV), Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Anual, nº7, 2014, APA;
[11] Miguel Catela, Confidencialidade em arbitragens versus interesse público, Revista Vida Judiciária, março/abril, 2016.