O Recurso Hierárquico
Necessário e a sua constitucionalidade
Este post tem por objecto a análise sobre a
(in)admissibilidade do recurso hierárquico necessário face ao regime do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e da Constituição da República
Portuguesa (CRP), nomeadamente sobre a constitucionalidade deste instituto face
à Reforma de 2003 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
Segundo o
Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o recurso hierárquico ‘’consiste no meio de
impugnação de um acto administrativo que tenha sido praticado por um órgão
subalterno, perante o respectivo superior hierárquico, a fim de obter deste a
revogação, modificação ou substituição do acto recorrido.”[1].
De acordo com o artigo
185º nº1 do CPA, os recursos hierárquicos podem ser necessários ou
facultativos, sendo que a regra geral é a da faculdade (art. 185º nº2 CPA), não
constituindo por isso o recurso hierárquico, na actualidade, um passo
obrigatório para recorrer à via contenciosa.
No contencioso
administrativo anterior à Reforma, o acesso à justiça administrativa surgia
limitado, uma vez que um acto administrativo só poderia ser impugnado se fosse,
simultaneamente, definitivo e executório. Esta definitividade era, segundo o
Professor Diogo Freitas do Amaral tripartida em vertical, horizontal e
material.
Assim, para que o acto
fosse impugnável era necessário que este tivesse como autor o órgão superior
máximo (verticalidade). Se o acto fosse praticado por um subalterno, a
impugnação contenciosa do acto administrativo estava dependente da impugnação
administrativa em qualquer das suas formas – reclamação, recurso hierárquico ou
recurso tutelar. Relativamente à horizontalidade, só se consideravam
impugnáveis os actos finais do procedimento administrativo. E, por último, só
seriam impugnáveis os actos que regulavam o direito aplicável no caso
individual e concreto (materialidade).
No entanto, com a
revisão da CRP de 1989 a impugnabilidade de um acto administrativo deixou de
estar sujeita a esta noção de acto ‘’definitivo e executório’’ e passou a estar
em vigor o critério de ‘’acto lesivo de direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares’’, segundo o artigo 268º nº4 CRP. Esta alteração,
que visou essencialmente tutelar o
acesso à justiça administrativa, acabou por criar alguma discussão na doutrina,
uma vez que a eliminação das características da definitividade e da
executoriedade do acto administrativo levou a que alguns considerassem como
inconstitucionais as normas que condicionavam a sua impugnação contenciosa a
uma prévia impugnação administrativa obrigatória. A não exigência da
definitividade do ato administrativo permitiria por isso o acesso imediato à
via contenciosa, tendo em conta a lesividade do mesmo.
Desacompanhado pela
jurisprudência e pela maioria da doutrina, o Professor Vasco Pereira da Silva
entende que após a revisão de 1989, o recurso hierárquico necessário passou a
ser inconstitucional. Isto porque, em primeiríssima instância, a CRP deixou de o
consagrar no momento da revisão. Além do mais, se assim não se considerasse,
estar-se-iam a violar vários princípios constitucionais, tais como o princípio
da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º/4 CRP), o
princípio da separação entre a Administração e a Justiça (arts. 111º, 202º e
ss., 266º e ss. CRP), o princípio da desconcentração administrativa (art. 267º
nº2 CRP) e, por último, o princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº4
CRP).
Por outro lado,
autores como Vieira de Andrade, defenderam que a exigência de impugnação
administrativa antes da impugnação contenciosa não é de maneira alguma
inconstitucional, uma vez que essa exigência não viola o artigo 268º nº4 CRP.
Para a maioria da doutrina, que continuava a considerar a necessidade da tripla
definitividade,, o acesso ao
contencioso previsto no artigo 268º nº4 não era negado aos particulares,
simplesmente ficaria sujeito ao ónus de impugnação administrativa prévia.
Na opinião do
Professor Mário Aroso de Almeida, cabe à lei ordinária a regulação do processo
administrativo e os respectivos requisitos a que este está sujeito. Deste modo,
‘’desde que não haja qualquer condicionamento excessivo, desproporcionado e
ilegítimo de acesso à justiça administrava, não há qualquer inconstitucionalidade’’[2].
A posição destes
últimos autores é acompanhada pela jurisprudência. No acórdão nº 499/96, do
Tribunal Constitucional (TC), que considerou que o recurso hierárquico não é
era inconstitucional pode ler-se: “Não se pode concluir, porém, que seja hoje
inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a
interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro,
utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado
o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo
artigo 268º, nº 4 da Constituição. Nesta situação, a precedência de recurso
hierárquico tem como efeito determinar o início do prazo para a interpretação
de recurso contencioso, sem o restringir nem acarretar a sua inutilidade.’’[3]
Ainda que seja unânime
na doutrina que a figura do recurso hierárquico necessário, como regra geral,
foi afastada pelo CPTA na Reforma de 2003, vigorando na actualidade um regime
jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa, isso não
significa que esta solução tenha agradado a todos os pensadores de Direito. Por
exemplo, o Professor Diogo Freitas do Amaral criticou esta opção do legislador,
por considerar que a eliminação da figura do recurso hierárquico necessário
teria como consequência prática um ‘’mar’’ de processos nos tribunais
administrativos que, associado à possibilidade de providências cautelares,
levará à paralisação da Administração Pública.
Se, por um lado, o
Professor Mário Aroso de Almeida entende que se deve passar a admitir o recurso
hierárquico necessário quando o legislador tenha tomado tal decisão de forma
consciente e deliberada[4] e, assim sendo, as normas
do CPA relativas ao recurso hierárquico devem ser tidas em conta através de uma
interpretação actualista, por outro lado, o Professor Vasco Pereira da Silva
considera que todo o regime do recurso hierárquico necessário caducou (e não
foi revogado pelo CPTA), pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que
o justificava, uma vez que a impugnação administrativa de um acto já não é condição necessária para
a posterior impugnação a nível contencioso.
Nas palavras do
Professor Vasco Pereira da Silva, ‘’o legislador da reforma veio afastar, de
modo expresso e inequívoco, a necessidade de recurso hierárquico como condição
de acesso à justiça administrativa’’[5]. Isto
porque o artigo 51º nº1 CPTA estabelece que são impugnáveis todas as decisões
da Administração Pública que sejam susceptíveis de lesar direitos ou interesses
legalmente protegidos dos particulares ou, genericamente, que o acto que se
pretende impugnar seja de eficácia externa. Também do artigo 59º nº4 e 5 CPTA decorre
a regra geral da desnecessidade da impugnação administrativa para aceder à via
contenciosa, pois este artigo consagra que o recurso faz suspender o prazo de
impugnação, o que não significa que o particular não possa impugnar contenciosamente
sem efectuar o recurso, podendo mesmo fazê-lo na pendência da impugnação
administrativa.
Assim, relativamente
às regras especiais, dispersas em diplomas avulsos, que continuam a consagrar
impugnações administrativas necessárias, a doutrina diverge no que concerne ao
seu confronto com o novo regime geral do CPTA, após a reforma.
Para os Professores
Mário Aroso de Almeida, Vieira de Andrade e Marcelo Rebelo de Sousa, ainda que
a Reforma de 2003 tenha revogado, de forma geral, o recurso hierárquico
necessário, são de considerar as disposições legais específicas que, de um modo
claro, fazem
depender a impugnação contenciosa de um
acto da prévia impugnação administrativa, tendo por isso de se considerar estas
disposições especiais válidas e ainda em vigor, uma vez que as normas especiais
prevalecem sobe a norma geral que consta no CPTA. Assim, quando nada é dito,
entende-se que o acto pode ser imediatamente impugnado perante os tribunais
administrativos. No entanto, nos casos em que a legislação especial instituía impugnações
administrativas, estas devem ser observadas.
Esta interpretação restritiva ou
minimalista do novo regime do CPTA tem como principais fundamentos ‘’evitar que
as pessoas (…) sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo, para organizarem,
sob cominação de uma sanção grave, a defesa dos seus interesses, numa situação
em que a situação da parte contrária (no caso, o impugnante) o não justifica” e
ainda de “não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos
tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente
indispensável a intervenção jurisdicional’’[6].
Para estes autores continua, portanto, a fazer sentido a distinção entre o recurso
hierárquico necessário e o facultativo, estando o legislador livre de exigir a
definitividade vertical do acto como pressuposto do recurso contencioso ou não,
desde que essa exigência não seja desproporcionada nem arbitrária, nem viole o
princípio fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva
(arts. 20.º e 268.º nº4 CRP).
Já assim não pensam os Professores
Vasco Pereira da Silva e Paulo Otero. Para estes autores, o legislador da
reforma afastou, de forma expressa e inequívoca, a existência de recurso
hierárquico necessário, independentemente da sua fonte, afectando tanto as
normas gerais como as especiais. Desta forma, é sempre possível ao particular
aceder de imediato à via contenciosa, passando todas as garantias
administrativas a ser facultativas.
Defende o Professor Vasco Pereira da
Silva que, após a reforma, ao desaparecer por completo no CPTA qualquer referência
à necessidade de prévia impugnação administrativa para impugnar o acto
judicialmente, a figura do recurso hierárquico necessário foi definitivamente afastada
pelo legislador, caducando por isso não só as disposições gerais do CPA que
regulam esta figura, como também qualquer lei avulsa que consagre a
obrigatoriedade de recurso hierárquico ou outra garantia administrativa.
Para o Professor, que ao contrário
de autores como Vieira de Andrade e Aroso de Almeida, faz uma interpretação ampla
ou maximalista do novo regime, não é possível compatibilizar a regra geral de
admissibilidade de acesso à justiça
com as regras especiais que manteriam a exigência da prévia impugnação administrativa
para se poder impugnar um acto judicialmente. Se a razão de ser dessa exigência
era admitir o recurso contencioso, e se a lei de processo já não o exige, então
a exigência não mais se mantem. Seria o mesmo que consagrar o recurso
hierárquico necessário desnecessário. E isto vale tanto para as disposições gerais
como para as regras especiais, uma vez que se o CPTA revogou as regras gerais,
mas não as especiais, tem de se concluir que, anteriormente à reforma, estas
últimas regras não eram de facto especiais, mas apenas uma confirmação da regra
geral e, assim, não careciam de uma revogação expressa, uma vez que a revogação
da regra geral implica, ainda que implicitamente, a revogação de todas as
outras regras que se limitavam a confirmar o seu regime jurídico.
Relembro que o Professor regente nem
sequer entende que existe uma revogação do regime do recurso hierárquico necessário,
tratando-se antes de um caso de caducidade das
regras especiais, por falta de objecto. Se a razão de ser da necessidade prévia
das garantias era garantir o acesso ao juiz, isso significa que a exigência do
recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas,
pelo que se deve considerar que essas normas caducam.
Mais aponta o Profesor que, se do ponto de vista constitucional já era
difícil considerar que a exigência do recurso hierárquico necessário não era
inconstitucional antes da Reforma, agora é mesmo ‘’missão impossível’’
justificar que após a mesma, pudessem existir excepções ao regime agora
consagrado, criando um contencioso privativo de certas categorias de actos administrativos.
Assim, diz o Professor Vasco Pereira da Silva, nada seria mais inútil e despropositado do que
continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal
exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação dos actos administrativos.
Com o devido respeito, entendo que,
após a reforma, o recurso hierárquico necessário não se tornou inconstitucional
e sigo a posição do Professor Mário Aroso de Almeida, segundo o qual, em regra,
não é necessário impugnar previamente o acto a título administrativo para se
poder recorrer aos meios contenciosos, o que não era possível antes da reforma.
Assim, à partida, o recurso hierárquico será facultativo, tal como resulta do
artigo 185º nº2 CPA, e será necessário nos casos em que a legislação especial
consagre a obrigatoriedade de impugnação administrativa anterior à impugnação contenciosa.
Nestes casos, a pretensão do autor que não impugne previamente o acto a título
administrativo deve ser recusada uma vez que ‘’a lei não lhe reconhece o
interesse processual que, no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter
tentado infrutiferamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial
legalmente estabelecida.’’[7]
Deve por isso fazer-se uma interpretação
restritiva do regime do CPTA após a reforma, de maneira a que se entenda que a
regra do recurso hierárquico facultativo é aplicada, segundo os artigos 51º nº
1 e 59º nº 4 e 5 CPTA, aos actos administrativos com eficácia externa,
especialmente àqueles cujo conteúdo seja suscetível de lesar direitos ou
interesses legalmente protegidos, não estando por isso abrangidas por esta regra
de facultatividade as disposições legais avulsas que instituem impugnações administrativas
necessárias.
Bibliografia:
ALMEIDA,
MÁRIO AROSO DE, Cadernos Jurídicos
Administrativos;
ALMEIDA,
MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo
Administrativo Coimbra, Almedina, 2014;
AMARAL,
DIOGO FREITAS DO, Considerações
Gerais Sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Trabalhos preparatórios in Reforma
do Contencioso Administrativo;
ANDRADE,
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª
ed., Coimbra 2009;
SILVA,
VASCO PEREIRA DA, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre
as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2016;
SOUSA,
MARCELO REBELO DE e MATOS, ANDRÉ SALGADO DE, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2009.
Marta Stock
da Cunha
Aluna nº 23704
[1] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ
SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo
Geral, Tomo III, Dom Quixote, pp. 211-218.
[3] Para consulta do texto integral:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960499.html
[4] Note-se que o Código Civil, no
art.º 7.º nº3 dispõe que “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se
outra for a intenção inequívoca do legislador”.
[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina,
Coimbra, 2014, pp. 306 e 307