- Aspectos gerais: Ministério Público
Nas
palavras de VIERA DE ANDRADE, o Ministério Público é “um órgão constitucional
da administração da justiça dotado de independência (…), mas não é um órgão de
soberania, nem se confunde com os órgãos do poder judicial.
O
Ministério Público caracteriza-se pela sua unidade orgânica, pela
multiplicidade de funções e pela prossecução de diferentes interesses públicos[i],
sendo um órgão de administração da justiça, integrado na função judicial do
Estado, não administrativo, com um estatuto próprio e autonomia institucional,
tal como estabelecido no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (doravante
CRP). Ele é constituído por um grupo de magistrados responsáveis e
hierarquicamente subordinados, e cuja gestão e disciplina cabe à
Procuradoria-Geral da República, ao abrigo dos artigos 219º/2, 4 e 5 da CRP e
75º e 76º/1 do Estatuto do Ministério Público
(doravante EMP). O Ministério Público Detém um poder judiciário autónomo
e é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade bem
como o rigoroso cumprimento da lei à luz dos princípios democráticos.
- Origens e a sua evolução
Como
salienta PAULA MARÇALO[ii]
“Embora com origens bem mais remotas - a doutrina portuguesa convém em que o
aparecimento do Ministério Público, como organização estável e permanente, se
verificou, entre nós, no século XIV”.
As
origens mais remotas levam-nos a 1832, onde por Decreto foi criado o Ministério
Público, tendo como função expor por escrito uma opinião fundamentada, que
seria mencionada e tida em conta no final do processo.
Nos finais do século XIX as funções do Ministério Público já
possuíam alguma complexidade “porque por um lado, assistíamos,
em função dos graus de jurisdição, a um dualismo orgânico no desempenho das
funções: num caso, agentes diretamente provindos da administração, no outro
magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado. Pelo outro, uma
certa indefinição quando à natureza dos interesses prosseguidos”, citando
SÉRVULO CORREIA. No plano constitucional, somente com a Constituição política
de 1933 apareceu uma referência ao Ministério Público como representante do
Estado junto dos tribunais. No entanto, só com a Constituição nascida pela
revolução de 25 de Abril de 1974 é que foi consagrada expressamente a sua
autonomia.
Segundo
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[iii] “O
Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização
dos tribunais que mais dúvida oferece quanto à sua posição constitucional.
Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro, representante do rei junto
da autoridade judiciária, depois, órgão dos tribunais dependente do Governo, e,
por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o
paradigma de Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um
órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder
executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias
aproximadas das dos juízes.”
Em
2004, com a entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais (doravante ETAF) e do Código do Processo nos Tribunais Administrativos
(doravante CPTA), foi criado o novo paradigma de justiça administrativa no
sentido da subjetivação do contencioso administrativo, que não deixou intocado
o modelo tradicional do Ministério Público[iv].
- Funções do Ministério Público no atual Contencioso Administrativo: Enquadramento
A intervenção do Ministério Público no processo
administrativo encontra-se delimitada pela constituição (no art. 219º), e é densificada
e concretizada no EMP nos arts. 1º a 6º, bem como em legislação administrativa,
ao longo do CPTA e do ETAF.
No
actual ordenamento jurídico do nosso Contencioso Administrativo, deparamo-nos
com um regime do Ministério Público caracterizado pela unidade orgânica, a
multiplicidade de funções e a diferenciação dos interesses públicos que por ele
devem ser prosseguidos. Há unidade orgânica visto que, nos termos do art.4.º/1
do EMP, apenas agem pelo Ministério Público junto dos tribunais
administrativos, elementos da magistratura assim denominada que integrem a
carreira definida no art. 74.º e ss. do diploma.
Perante este enquadramento SÉRVULO CORREIA[v]
afirma que as funções do Ministério Público são de três ordens: “Uma
delas é a da ação pública. (...), uma segunda função do Ministério Público é a
da coadjuvação do Tribunal na realização do Direito. A terceira função consiste
no patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por
imperativo legal.”, sendo que o autor afirma que só nesta terceira vertente é
que se aplica plenamente a qualificação do Ministério Público como «um corpo de
advogados do Estado» de FREITAS DO AMARAL.
GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA entendem que as suas funções se podem agrupar em
quatro áreas: representar o Estado (nomeadamente nos tribunais, nas causas em
que ele seja parte, funcionando como uma espécie de Advogado do Estado),
exercer a ação penal, defender a legalidade democrática (intervindo no
contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade) e
defender os interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção
(designadamente, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.). Por sua vez,
MESQUITA FURTADO[vi]
sistematiza os poderes conferidos ao Ministério Público em: poderes de representação
de outros sujeitos processuais, poderes de iniciativa processual em nome
próprio (ação pública e ação popular) e poderes de intervenção em processos
intentados por outros sujeitos processuais. Perante o exposto, não obstante outras funções
enunciadas, é pacifico afirmar que as suas
atribuições se podem resumir em três áreas: a representação do Estado (no
sentido de Estado-Administração), a Defesa da legalidade democrática e a
promoção da realização do interesse público, de tutela e prossecução de valores
e bens merecedores de especial proteção - como os interesses públicos
especialmente relevantes, os direitos fundamentais dos cidadãos e os interesses difusos ou coletivos
- (artigos 9º/2, 10º/2 e 11º/1 in
fine do CPTA e art 51º do ETAF).
O Ministério Público pode também agir na vertente de amicus curiae, podendo esta sua intervenção
no processo ser designada de diversas formas (consoante o autor em questão)
nomeadamente como «auxiliar do juiz» (VASCO PEREIRA DA SILVA), «auxiliar de
justiça» (VIEIRA DE ANDRADE) ou como «assistente público» (SÉRVULO CORREIA). De
acordo com o art.85º do CPTA esta atuação na vertente de amicus curiae é apenas facultativa, e unicamente sobre o mérito da causa,
desde que fundada nos objetivos do nº2 (vendo os seus poderes alargados nos
processos impugnatórios por força do nº3).
Após este breve enquadramento da multiplicidade de funções do
Ministério Público no Contencioso Administrativo, o tema do meu trabalho vai
incidir fundamentalmente sobre a sua função de Representação do Estado,
cumprindo, inevitavelmente, de apreciar também a sua articulação com a função
de Defesa da Legalidade Democrática - dado o seu potencial conflito.
- A Representação do Estado pelo Ministério Público e a Prossecução do Interesse Público e da Defesa da legalidade democrática
A
Constituição da República Portuguesa consagra no seu art. 219º/1, a competência
atribuída ao Ministério Público de “representar
o Estado e defender os interesses que a lei determinar”. SÉRVULO CORREIA
infere, com razão, que a “competência de representação (conferida pelo
preceito) é extremamente genérica. O texto não diz quais as matérias a que
respeitará a representação, nem quais as circunstâncias - nomeadamente os tipos
de processo - em que esta se desenvolverá.” Perante esta situação este preceito
tem sido alvo de uma interpretação restritiva no que respeita à representação
do Estado no âmbito do contencioso administrativo por autores como JORGE
MIRANDA e RUI MEDEIROS[vii] e
ALEXANDRA LEITÃO[viii],
no sentido de o limitar à defesa dos interesses patrimoniais do Estado, tal
como está consagrado na alínea a) do artigo 53.º do EMP. No site do Ministério
Público, contudo, diz expressamente que ele representa o Estado “(…) quando estão em causa interesses patrimoniais ou interesses
não patrimoniais que se identificam com os interesses da comunidade e com o
interesse público”, indicando que não segue esta interpretação mais restritiva.
Na mesma linha, o art. 51º do ETAF vem a concretizar o
preceito da constituição, determinando que compete ao Ministério Público a
representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e a promoção de
interesses públicos. O que resulta deste preceito é que, sendo o Estado uma
parte – ativa ou passiva - numa ação, os seus interesses irão ser defendidos
por representação do Ministério Público, sendo que esta é feita no primeiro
caso (posição de autor) a pedido do órgão competente em razão da
matéria em apreço, enquanto que no outro (posição
de réu) a intervenção do Ministério Público resulta da sua citação
enquanto representante do Estado, à luz dos artigos 9º e 10º do CPTA, sendo
imposta por lei.
Nos
termos do art. 9º/2 do CPTA cabe ao Ministério Público promover a ação pública,
ou seja, intentar ações em defesa da legalidade e de certos interesses coletivos
essenciais. Neste quadro, “o Ministério Público tem legitimidade para propor e
intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares
destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a
saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a
qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das regiões
autónomas e das autarquias locais”. A ação publica constitui atualmente, na
opinião de VASCO PEREIRA DA SILVA[ix], o
principal poder de intervenção processual do Ministério Público “na sequencia
da reforma do Contencioso Administrativo, que revalorizou o respetivo papel de
sujeito processual em detrimento da sua intervenção «auxiliar do juízo»”.
Resulta que à luz de uma interpretação restritiva do dito
artigo 51.º do ETAF, que ao Ministério Público não compete representar qualquer
outra entidade que não seja o Estado, sendo de excluir quaisquer outras pessoas
coletivas públicas. O art. 1º do EMP segue o mesmo raciocínio dos artigos
citados, contudo, perante o exposto, parece que é também necessário
fazer uma interpretação restritiva relativamente ao disposto na alínea a) do
número 1 do artigo 3º do mesmo diploma, quando o preceito refere que compete ao
Ministério Público representar não só o Estado, mas também as regiões autónomas
e as autarquias locais. Dito por outras palavras devemos desconsiderar a menção
às regiões autónomas e às autarquias locais no dto preceito porque, tal como ALEXANDRA
LEITÃO refere, o facto de o ETAF e o CPTA serem posteriores ao EMP, e por serem
lei especial relativamente ao EMP, faz desencadear uma derrogação tácita na
parte a que se refere às regiões autónomas e às autarquias locais[x].
A representação do Estado pelo Ministério Público é
entendida como sendo imperativa/obrigatória, não sendo possível nomear outra
entidade para efeitos de representar o Estado, ao contrário da representação a
título de patrocínio judiciário de outras pessoas e entidades coletivas
públicas que surge sempre como facultativo, cessando com a constituição de
mandatário judicial próprio (artigo 5º, nºs 2 e 3 do EMP).
- Natureza Jurídica da Representação do Estado pelo Ministério Público
Ficou
assente que o Ministério Público deve representar somente o
Estado-Administração, mas a doutrina divide-se na questão da sua natureza
jurídica, cumprindo como tal fazer uma breve apreciação. A doutrina diverge
quanto à questão de saber se a representação em causa é legal ou orgânica, ou
então se estamos antes perante simples patrocínio judiciário.
A
Constituição e a legislação ordinária referem-se apenas a “representação” (no
art. 219º/1 da CRP, no art. 3.º do EMP e no artigo 11.º do CPTA), carecendo de concretização.
Em
primeiro lugar é de rejeitar que a dita representação seja na verdade um simples
patrocínio judiciário porque, nas ações administrativas, o Estado é citado na
pessoa do procurador junto do tribunal competente. O patrocínio judiciário
ocorre antes, por exemplo, no caso das regiões autónomas e das autarquias
locais, em que estas são citadas, nas pessoas dos respetivos chefes dos órgãos
executivos, podendo solicitar ao Ministério Público que as defenda (atuando
como advogado). Perante o exposto é de rejeitar a tese do patrocínio judiciário,
tratando-se de uma representação.
A
maioria da doutrina considera que a representação do Estado pelo Ministério
Público é uma verdadeira representação orgânica, e fundamentam a sua posição no
argumento de que o Ministério Público é um órgão do Estado (nesse sentido NEVES
RIBEIRO[xi]) e se
figura como sujeito da relação material controvertida. O site oficial do
Ministério Público também a qualifica como representação orgânica, adotando
assim a opinião da doutrina dominante neste aspeto.
No
sentido oposto, ALEXANDRA LEITÃO considera que a sua qualificação como
representação orgânica suscita dúvidas[xii] , pois
apesar de ele ser um órgão do Estado ele não é um órgão da pessoa colectiva
Estado (dito Estado-Administração), sendo um órgão que se integra, à luz do
principio da separação orgânico-funcional de poderes, na função judicial do
Estado, sendo a atual posição adotada da maioria da doutrina incoerente com a própria
desgovernamentalização do MP.
É
verdade que o Estado não pode afastar a intervenção do Ministério Público através
da constituição de mandatário judicial, mas essa solução justifica-se à luz do conceito
de representação legal, e não orgânico como parecem dar a entender. Seria possível
optar por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado,
mas seria impossível determinar que a pessoa colectiva deixasse de ser
representada por um, ou mais, dos seus órgãos, pela simples razão de que as
pessoas colectivas são entidade imateriais que carecem sempre de um ou mais
órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade – sendo isto
o ponto principal da distinção entre representação orgânica e legal.
Enquanto
que a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas a
representação legal decorre de uma opção do legislador, sendo mais adequado
aceitar a tese da representação legal pelos argumentos aqui apresentados.
- Defesa da Legalidade Democrática e a Prossecução do Interesse Público: a «encruzilhada»
Perante
a leitura de tudo o que foi exposto até aqui no trabalho, não é difícil de
perceber que o mecanismo de intervenção do Ministério Público, tal como se
encontra consagrado no plano da representação do Estado, pode causar situações
de conflitos de deveres - nomeadamente porque parece haver uma aparente contradição
entre os seus deveres de «Defesa da Legalidade Democrática» e da «Prossecução
do Interesse Público» previstos no já referido art.219º/1 da CRP - no sentido
em que os interesses do Estado poderão nem sempre ser compatíveis com a
prossecução do princípio da legalidade, pois tal como ALEXANDRA LEITÃO refere
“o Estado prossegue o interesse público e não interesses particulares (…) mas
Isso não significa, que aquele seja sempre coincidente com o princípio da
legalidade, e de facto nem sempre o é.”. É nestas situações, em que a atuação
administrativa seja ilegal ou que se suscitem dúvidas quanto à mesma, que o
Ministério Público se encontra numa «encruzilhada» entre as suas funções de
prossecução do interesse público e de defesa da legalidade democrática.
A
doutrina defende que todas as atuações do Ministério Público têm,
necessariamente, de estar em conformidade com a lei[xiii],
têm que ser imparciais e objetivas, sendo neste sentido uma questão pacifica. Nesse
sentido JOSÉ OSÓRIO[xiv]
comenta sobre o assunto dizendo que “Na realidade, o Ministério Público
representa o Estado no pressuposto de que os interesses do Estado são legítimos
e legais, e só nessa medida. Em caso algum lhe está imposto que defenda os
interesses reais do Estado a outrance,
isto é, tenham ou não cobertura do sistema legal. E assim bem se pode dizer que
a representação que ao Ministério Público cabe fazer é a da lei”, confirmando que
existe uma clara prevalência pela defesa da legalidade nestas situações (que não
poderia deixar de ser num Estado Democrático).
A
solução para este problema passa necessariamente pela leitura do artigo 69º do
EMP, nomeadamente no nº1 do preceito, onde diz que “Em caso de conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o
Ministério Público deva representar, o procurador da República solicita à Ordem
dos Advogados a indicação de um advogado para representar uma das partes.”
Este
artigo não estabelece nenhuma preferência sobre qual das partes deve o
Ministério Público patrocinar, nem tal parece resultar de nenhuma outra
disposição - no entanto não pode deixar de se ponderar a circunstância de se estar,
no caso do Estado, perante uma situação de representação em sentido próprio e
noutro estar em causa o patrocínio judiciário - perante este cenário podemos adotar
duas posições doutrinárias:
A)
A de que o artigo 69º do EMP é suficiente para resolver os problemas de
conflito de deveres (nesse sentido FRANCISCO NARCISO[i]);
B)
Ou, pelo contrário, o art. 69.º do EMP não se demonstra suficiente, sendo que o
Ministério Público deve recusar a sua função de representante do Estado,
devendo ser dada ao Estado a possibilidade de escolher o seu representante de
entre um advogado solicitado à Ordem dos Advogados ou um funcionário da
Administração com competências suficientes para representar a Administração em
juízo.
As
duas posições não são tão distintas como possam aparentar ser – à primeira
vista - pois em ambas sustentam que, perante atos administrativos cuja
ilegalidade se consegue aferir de imediato por qualquer sujeito - ou dito por
outras palavras, quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal -
nessas situações o Ministério Público deve abster-se de representar o Estado em
juízo. Esta solução implica que, perante colisão entre a manutenção da
legalidade ou a defesa do Estado, a primeira prevaleça sobre a última (o art.
69º do EMP aponta também para esse sentido). A razão de ser desta posição
resulta do facto de todas as atuações do Ministério Público terem
necessariamente, tal como já referi anteriormente, de se pautar por critérios
de legalidade, imparcialidade e objetividade, e que por isso, em caso de
conflito, deve ceder a função de representação do Estado.
A
diferença entre as duas posições doutrinárias assenta que, para a primeira
posição, nas situações em que a ilegalidade não é óbvia, entendem os seus
defensores que o Ministério Público deve ser o representante do Estado, já que a
ele não lhe é permitido efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade ou
ilegalidade do ato em causa (sendo um juízo que incumbe primariamente e em
absoluto ao juiz[xvi]),
tal como refere CLAÚDIA ALEXANDRA DOS SANTOS DA SILVA.
Nesse
sentido, como o Ministério Público não tem competência para aferir da
legalidade de atos administrativos a priori, isto significa que ele apenas só
pode recusar a representação do Estado em situações extremas, como defende
SÉRVULO CORREIA[xvii],
com fundamento exclusivo numa evidente ilegalidade da pretensão do Estado,
dando lugar à nomeação de um mandatário pela Ordem dos Advogados nessa
situação, e não à impossibilidade absoluta de apresentação da ação.
Na
posição oposta, os seus defensores sustentam que é inadmissível a representação
do Estado pelo Ministério Público no caso de este ter de assumir posições não
compatíveis com a legalidade, devendo, como tal, ser conferido ao Estado a
possibilidade de escolha do seu representante.
Em
primeiro lugar, não tenho dúvida alguma que, nos casos em que a pretensão do
Estado seja manifestamente ilegal, se aplique a solução analógica do dito
artigo 69º (sendo uma questão pacifica entre a doutrina) contudo, nos casos de
dúbia legalidade tenho algumas reservas. Na minha opinião, considero que a
posição de SÉRVULO CORREIA se apresenta a mais correta, pois o Ministério
Público não pode atuar de maneira a fazer-se substituir à decisão final do juiz,
sendo que, perante situações dúbias quanto à legalidade das pretensões do
Estado, assim se deve manter a função de representação do Ministério Público.
No
mesmo sentido ALEXANDRA LEITÃO afirma que se fosse possível o próprio
Ministério Público “invocar a existência de uma ilegalidade, que lhe impõe o
afastamento da sua função de representação do Estado, pode acarretar, por si
só, um prejuízo para a posição deste na medida em que traduz um juízo de valor
sobre a sua pretensão”.
Para
concluir queria também mostrar a minha concordância com a autora quando menciona
que o artigo 69.º do EMP assume um papel relativamente reduzido na resolução de
eventuais contradições entre as funções de defesa da legalidade e de
representação do Estado, porque este mecanismo serve apenas para os casos em
que seja manifesta a ilegalidade da pretensão do Estado, acabando assim por ter
um âmbito de aplicação muito reduzido[xviii].
- Conclusão:
Este
conflito é inevitável perante o atual mecanismo da representação obrigatória do
Estado pelo Ministério Público, porque nas palavras de SÉRVULO CORREIA “Não é
fácil emparelhar cada uma das funções no Contencioso Administrativo com os
interesses públicos cuja prossecução o legislador lhes aponta. Com efeito, embora, por definição, caiba ao
Ministério Público prosseguir sempre o interesse público em sentido amplo,
torna-se patente que o direcionamento finalístico não é rigorosamente idêntico
quando impugna contenciosamente um ato administrativo de um órgão do Estado com
fundamento na respetiva ilegalidade ou quando representa o Estado numa ação em
que este seja autor ou réu.”
De
iure condendo, defendo, claramente que
a solução ideal para este conflito seria a que VIEIRA DE ALMEIDA[xix]
propõe, a de que o Ministério Público deveria ter o seu papel circunscrito à
defesa da legalidade, prosseguindo-a de modo objetivo e imparcial, como órgão
auxiliar da justiça administrativa, deixando, como tal, de desempenhar a função
de representante do Estado com o intuito de evitar as situações de confronto
aqui em análise. Autores como ALEXANDRA LEITÃO, TIAGO SERRÃO[xx],
entre outros, partilham o mesmo entendimento.
Bibliografia:
ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo
Ministério Público nos tribunais administrativos, in Revista Julgar nº20,
Coimbra Editora, 2013;
ANTÓNIO NEVES RIBEIRO, “O Estado nos Tribunais”, Coimbra
Editora, Coimbra, 1994;
CLÁUDIA ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, e-pública: revista
eletrónica de direito público, “O Ministério Público no atual
contencioso administrativo português”, 2016;
FRANCISCO
NARCISO, “O Ministério Público na justiça administrativa”, in Revista do
Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010;
JOSÉ
OSÓRIO, “O Estado e o Ministério Público”, Separata do BMJ, nº68;
PAULA MARÇALO, Estatuto do Ministério
Público Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2011
SÉRVULO
CORREIA, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério
Público”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, volume I, Coimbra Editora,
Coimbra, 2001;
TIAGO
SERRÃO, A representação processual do Estado no Anteprojeto de revisão do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, O Anteprojeto de Revisão
do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014;
VASCO PEREIRA DA SILVA, O
contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009
VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 12.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012.
Maria Catarina
Silva Limpo
nº26670
[i] SÉRVULO CORREIA,
“A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”,
in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, volume I, Coimbra Editora, Coimbra,
2001, p. 303.
[ii] PAULA MARÇALO, Estatuto do Ministério Público
Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 31.
[iii] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição
da República Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao artigo 219º,
Coimbra Editora, Coimbra, 2010.
[iv] CLÁUDIA
ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, e-pública: revista eletrónica de direito
público, “O Ministério Público no atual contencioso administrativo
português”, 2016.
[v] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma
do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in
Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra,
2001, p.303.
[vi] MESQUITA FURTADO et al., A
intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos
em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, ver
p. 770.
[vii] JORGE MIRANDA E
RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora,
Coimbra, 2007, p. 216.
[viii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado
pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 191.
[ix] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso
administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009, p. 271.
[x] MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA E CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
3.º Edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 109.
[xi] ANTÓNIO NEVES
RIBEIRO, “O Estado nos Tribunais”, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 29.
[xii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado
pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, pp. 206 e 207.
[xiii] FRANCISCO
NARCISO, “O Ministério Público na Justiça Administrativa”, Revista do
Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p.119, e INÊS SEABRA HENRIQUES DE
CARVALHO, Em Defesa da Legalidade Democrática. O Estatuto Constitucional do
Ministério Público Português, Minerva, Lisboa, 2011, p. 44.
[xiv] JOSÉ OSÓRIO, O Estado e o Ministério Público, Separata do BMJ,
nº68, p. 6.
[xv] FRANCISCO
NARCISO, “O Ministério Público na justiça administrativa”, in Revista do
Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p. 119
[xvi] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do
contencioso, administrativo e as funções do Ministério
Público, pp. 317 e 318.
[xvii] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do
contencioso, administrativo e as funções do Ministério
Público, p. 317.
[xviii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do
Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p.200.
[xix] VIEIRA DE
ANDRADE, A Justiça Administrativa, 12.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 143
[xx] TIAGO SERRÃO et al., A
representação, ver pp. 230 e 237.
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