domingo, 10 de dezembro de 2017

Ministério Público numa «encruzilhada» entre as funções de Prossecução do Interesse Público e de Defesa da Legalidade Democrática


  •  Aspectos gerais: Ministério Público

Nas palavras de VIERA DE ANDRADE, o Ministério Público é “um órgão constitucional da administração da justiça dotado de independência (…), mas não é um órgão de soberania, nem se confunde com os órgãos do poder judicial.
O Ministério Público caracteriza-se pela sua unidade orgânica, pela multiplicidade de funções e pela prossecução de diferentes interesses públicos[i], sendo um órgão de administração da justiça, integrado na função judicial do Estado, não administrativo, com um estatuto próprio e autonomia institucional, tal como estabelecido no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Ele é constituído por um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados, e cuja gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, ao abrigo dos artigos 219º/2, 4 e 5 da CRP e 75º e 76º/1 do Estatuto do Ministério Público (doravante EMP). O Ministério Público Detém um poder judiciário autónomo e é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade bem como o rigoroso cumprimento da lei à luz dos princípios democráticos.

  • Origens e a sua evolução

Como salienta PAULA MARÇALO[ii] “Embora com origens bem mais remotas - a doutrina portuguesa convém em que o aparecimento do Ministério Público, como organização estável e permanente, se verificou, entre nós, no século XIV”.
As origens mais remotas levam-nos a 1832, onde por Decreto foi criado o Ministério Público, tendo como função expor por escrito uma opinião fundamentada, que seria mencionada e tida em conta no final do processo.
Nos finais do século XIX as funções do Ministério Público já possuíam alguma complexidade “porque por um lado, assistíamos, em função dos graus de jurisdição, a um dualismo orgânico no desempenho das funções: num caso, agentes diretamente provindos da administração, no outro magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado. Pelo outro, uma certa indefinição quando à natureza dos interesses prosseguidos”, citando SÉRVULO CORREIA. No plano constitucional, somente com a Constituição política de 1933 apareceu uma referência ao Ministério Público como representante do Estado junto dos tribunais. No entanto, só com a Constituição nascida pela revolução de 25 de Abril de 1974 é que foi consagrada expressamente a sua autonomia.
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[iii] “O Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização dos tribunais que mais dúvida oferece quanto à sua posição constitucional. Tendo em conta a sua evolução histórica (primeiro, representante do rei junto da autoridade judiciária, depois, órgão dos tribunais dependente do Governo, e, por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o paradigma de Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos juízes.”
Em 2004, com a entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) e do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), foi criado o novo paradigma de justiça administrativa no sentido da subjetivação do contencioso administrativo, que não deixou intocado o modelo tradicional do Ministério Público[iv].

  • Funções do Ministério Público no atual Contencioso Administrativo: Enquadramento

A intervenção do Ministério Público no processo administrativo encontra-se delimitada pela constituição (no art. 219º), e é densificada e concretizada no EMP nos arts. 1º a 6º, bem como em legislação administrativa, ao longo do CPTA e do ETAF.
No actual ordenamento jurídico do nosso Contencioso Administrativo, deparamo-nos com um regime do Ministério Público caracterizado pela unidade orgânica, a multiplicidade de funções e a diferenciação dos interesses públicos que por ele devem ser prosseguidos. Há unidade orgânica visto que, nos termos do art.4.º/1 do EMP, apenas agem pelo Ministério Público junto dos tribunais administrativos, elementos da magistratura assim denominada que integrem a carreira definida no art. 74.º e ss. do diploma.
Perante este enquadramento SÉRVULO CORREIA[v] afirma que as funções do Ministério Público são de três ordens: “Uma delas é a da ação pública. (...), uma segunda função do Ministério Público é a da coadjuvação do Tribunal na realização do Direito. A terceira função consiste no patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal.”, sendo que o autor afirma que só nesta terceira vertente é que se aplica plenamente a qualificação do Ministério Público como «um corpo de advogados do Estado» de FREITAS DO AMARAL.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA entendem que as suas funções se podem agrupar em quatro áreas: representar o Estado (nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma espécie de Advogado do Estado), exercer a ação penal, defender a legalidade democrática (intervindo no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade) e defender os interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção (designadamente, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.). Por sua vez, MESQUITA FURTADO[vi] sistematiza os poderes conferidos ao Ministério Público em: poderes de representação de outros sujeitos processuais, poderes de iniciativa processual em nome próprio (ação pública e ação popular) e poderes de intervenção em processos intentados por outros sujeitos processuais.  Perante o exposto, não obstante outras funções enunciadas, é pacifico afirmar que as suas atribuições se podem resumir em três áreas: a representação do Estado (no sentido de Estado-Administração), a Defesa da legalidade democrática e a promoção da realização do interesse público, de tutela e prossecução de valores e bens merecedores de especial proteção - como os interesses públicos especialmente relevantes, os direitos fundamentais dos cidadãos e os interesses difusos ou coletivos - (artigos 9º/2, 10º/2 e 11º/1 in fine do CPTA e art 51º do ETAF).
O Ministério Público pode também agir na vertente de amicus curiae, podendo esta sua intervenção no processo ser designada de diversas formas (consoante o autor em questão) nomeadamente como «auxiliar do juiz» (VASCO PEREIRA DA SILVA), «auxiliar de justiça» (VIEIRA DE ANDRADE) ou como «assistente público» (SÉRVULO CORREIA). De acordo com o art.85º do CPTA esta atuação na vertente de amicus curiae é apenas facultativa, e unicamente sobre o mérito da causa, desde que fundada nos objetivos do nº2 (vendo os seus poderes alargados nos processos impugnatórios por força do nº3).
Após este breve enquadramento da multiplicidade de funções do Ministério Público no Contencioso Administrativo, o tema do meu trabalho vai incidir fundamentalmente sobre a sua função de Representação do Estado, cumprindo, inevitavelmente, de apreciar também a sua articulação com a função de Defesa da Legalidade Democrática - dado o seu potencial conflito.

  • A Representação do Estado pelo Ministério Público e a Prossecução do Interesse Público e da Defesa da legalidade democrática

A Constituição da República Portuguesa consagra no seu art. 219º/1, a competência atribuída ao Ministério Público de “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar”. SÉRVULO CORREIA infere, com razão, que a “competência de representação (conferida pelo preceito) é extremamente genérica. O texto não diz quais as matérias a que respeitará a representação, nem quais as circunstâncias - nomeadamente os tipos de processo - em que esta se desenvolverá.” Perante esta situação este preceito tem sido alvo de uma interpretação restritiva no que respeita à representação do Estado no âmbito do contencioso administrativo por autores como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS[vii] e ALEXANDRA LEITÃO[viii], no sentido de o limitar à defesa dos interesses patrimoniais do Estado, tal como está consagrado na alínea a) do artigo 53.º do EMP. No site do Ministério Público, contudo, diz expressamente que ele representa o Estado “(…) quando estão em causa interesses patrimoniais ou interesses não patrimoniais que se identificam com os interesses da comunidade e com o interesse público”, indicando que não segue esta interpretação mais restritiva.
Na mesma linha, o art. 51º do ETAF vem a concretizar o preceito da constituição, determinando que compete ao Ministério Público a representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e a promoção de interesses públicos. O que resulta deste preceito é que, sendo o Estado uma parte – ativa ou passiva - numa ação, os seus interesses irão ser defendidos por representação do Ministério Público, sendo que esta é feita no primeiro caso (posição de autor) a pedido do órgão competente em razão da matéria em apreço, enquanto que no outro (posição de réu) a intervenção do Ministério Público resulta da sua citação enquanto representante do Estado, à luz dos artigos 9º e 10º do CPTA, sendo imposta por lei.
Nos termos do art. 9º/2 do CPTA cabe ao Ministério Público promover a ação pública, ou seja, intentar ações em defesa da legalidade e de certos interesses coletivos essenciais. Neste quadro, “o Ministério Público tem legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”. A ação publica constitui atualmente, na opinião de VASCO PEREIRA DA SILVA[ix], o principal poder de intervenção processual do Ministério Público “na sequencia da reforma do Contencioso Administrativo, que revalorizou o respetivo papel de sujeito processual em detrimento da sua intervenção «auxiliar do juízo»”.
Resulta que à luz de uma interpretação restritiva do dito artigo 51.º do ETAF, que ao Ministério Público não compete representar qualquer outra entidade que não seja o Estado, sendo de excluir quaisquer outras pessoas coletivas públicas. O art. 1º do EMP segue o mesmo raciocínio dos artigos citados, contudo, perante o exposto, parece que é também necessário fazer uma interpretação restritiva relativamente ao disposto na alínea a) do número 1 do artigo 3º do mesmo diploma, quando o preceito refere que compete ao Ministério Público representar não só o Estado, mas também as regiões autónomas e as autarquias locais. Dito por outras palavras devemos desconsiderar a menção às regiões autónomas e às autarquias locais no dto preceito porque, tal como ALEXANDRA LEITÃO refere, o facto de o ETAF e o CPTA serem posteriores ao EMP, e por serem lei especial relativamente ao EMP, faz desencadear uma derrogação tácita na parte a que se refere às regiões autónomas e às autarquias locais[x].
A representação do Estado pelo Ministério Público é entendida como sendo imperativa/obrigatória, não sendo possível nomear outra entidade para efeitos de representar o Estado, ao contrário da representação a título de patrocínio judiciário de outras pessoas e entidades coletivas públicas que surge sempre como facultativo, cessando com a constituição de mandatário judicial próprio (artigo 5º, nºs 2 e 3 do EMP).

  • Natureza Jurídica da Representação do Estado pelo Ministério Público

Ficou assente que o Ministério Público deve representar somente o Estado-Administração, mas a doutrina divide-se na questão da sua natureza jurídica, cumprindo como tal fazer uma breve apreciação. A doutrina diverge quanto à questão de saber se a representação em causa é legal ou orgânica, ou então se estamos antes perante simples patrocínio judiciário.
A Constituição e a legislação ordinária referem-se apenas a “representação” (no art. 219º/1 da CRP, no art. 3.º do EMP e no artigo 11.º do CPTA), carecendo de concretização.
Em primeiro lugar é de rejeitar que a dita representação seja na verdade um simples patrocínio judiciário porque, nas ações administrativas, o Estado é citado na pessoa do procurador junto do tribunal competente. O patrocínio judiciário ocorre antes, por exemplo, no caso das regiões autónomas e das autarquias locais, em que estas são citadas, nas pessoas dos respetivos chefes dos órgãos executivos, podendo solicitar ao Ministério Público que as defenda (atuando como advogado). Perante o exposto é de rejeitar a tese do patrocínio judiciário, tratando-se de uma representação.
A maioria da doutrina considera que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma verdadeira representação orgânica, e fundamentam a sua posição no argumento de que o Ministério Público é um órgão do Estado (nesse sentido NEVES RIBEIRO[xi]) e se figura como sujeito da relação material controvertida. O site oficial do Ministério Público também a qualifica como representação orgânica, adotando assim a opinião da doutrina dominante neste aspeto.
No sentido oposto, ALEXANDRA LEITÃO considera que a sua qualificação como representação orgânica suscita dúvidas[xii] , pois apesar de ele ser um órgão do Estado ele não é um órgão da pessoa colectiva Estado (dito Estado-Administração), sendo um órgão que se integra, à luz do principio da separação orgânico-funcional de poderes, na função judicial do Estado, sendo a atual posição adotada da maioria da doutrina incoerente com a própria desgovernamentalização do MP.
É verdade que o Estado não pode afastar a intervenção do Ministério Público através da constituição de mandatário judicial, mas essa solução justifica-se à luz do conceito de representação legal, e não orgânico como parecem dar a entender. Seria possível optar por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa colectiva deixasse de ser representada por um, ou mais, dos seus órgãos, pela simples razão de que as pessoas colectivas são entidade imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade – sendo isto o ponto principal da distinção entre representação orgânica e legal.
Enquanto que a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas a representação legal decorre de uma opção do legislador, sendo mais adequado aceitar a tese da representação legal pelos argumentos aqui apresentados.

  • Defesa da Legalidade Democrática e a Prossecução do Interesse Público: a «encruzilhada» 

Perante a leitura de tudo o que foi exposto até aqui no trabalho, não é difícil de perceber que o mecanismo de intervenção do Ministério Público, tal como se encontra consagrado no plano da representação do Estado, pode causar situações de conflitos de deveres - nomeadamente porque parece haver uma aparente contradição entre os seus deveres de «Defesa da Legalidade Democrática» e da «Prossecução do Interesse Público» previstos no já referido art.219º/1 da CRP - no sentido em que os interesses do Estado poderão nem sempre ser compatíveis com a prossecução do princípio da legalidade, pois tal como ALEXANDRA LEITÃO refere “o Estado prossegue o interesse público e não interesses particulares (…) mas Isso não significa, que aquele seja sempre coincidente com o princípio da legalidade, e de facto nem sempre o é.”. É nestas situações, em que a atuação administrativa seja ilegal ou que se suscitem dúvidas quanto à mesma, que o Ministério Público se encontra numa «encruzilhada» entre as suas funções de prossecução do interesse público e de defesa da legalidade democrática.
A doutrina defende que todas as atuações do Ministério Público têm, necessariamente, de estar em conformidade com a lei[xiii], têm que ser imparciais e objetivas, sendo neste sentido uma questão pacifica. Nesse sentido JOSÉ OSÓRIO[xiv] comenta sobre o assunto dizendo que “Na realidade, o Ministério Público representa o Estado no pressuposto de que os interesses do Estado são legítimos e legais, e só nessa medida. Em caso algum lhe está imposto que defenda os interesses reais do Estado a outrance, isto é, tenham ou não cobertura do sistema legal. E assim bem se pode dizer que a representação que ao Ministério Público cabe fazer é a da lei”, confirmando que existe uma clara prevalência pela defesa da legalidade nestas situações (que não poderia deixar de ser num Estado Democrático).
A solução para este problema passa necessariamente pela leitura do artigo 69º do EMP, nomeadamente no nº1 do preceito, onde diz que “Em caso de conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, o procurador da República solicita à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para representar uma das partes.”
Este artigo não estabelece nenhuma preferência sobre qual das partes deve o Ministério Público patrocinar, nem tal parece resultar de nenhuma outra disposição - no entanto não pode deixar de se ponderar a circunstância de se estar, no caso do Estado, perante uma situação de representação em sentido próprio e noutro estar em causa o patrocínio judiciário - perante este cenário podemos adotar duas posições doutrinárias:
  A) A de que o artigo 69º do EMP é suficiente para resolver os problemas de conflito de deveres (nesse sentido FRANCISCO NARCISO[i]);
  B) Ou, pelo contrário, o art. 69.º do EMP não se demonstra suficiente, sendo que o Ministério Público deve recusar a sua função de representante do Estado, devendo ser dada ao Estado a possibilidade de escolher o seu representante de entre um advogado solicitado à Ordem dos Advogados ou um funcionário da Administração com competências suficientes para representar a Administração em juízo.

As duas posições não são tão distintas como possam aparentar ser – à primeira vista - pois em ambas sustentam que, perante atos administrativos cuja ilegalidade se consegue aferir de imediato por qualquer sujeito - ou dito por outras palavras, quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal - nessas situações o Ministério Público deve abster-se de representar o Estado em juízo. Esta solução implica que, perante colisão entre a manutenção da legalidade ou a defesa do Estado, a primeira prevaleça sobre a última (o art. 69º do EMP aponta também para esse sentido). A razão de ser desta posição resulta do facto de todas as atuações do Ministério Público terem necessariamente, tal como já referi anteriormente, de se pautar por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade, e que por isso, em caso de conflito, deve ceder a função de representação do Estado.
A diferença entre as duas posições doutrinárias assenta que, para a primeira posição, nas situações em que a ilegalidade não é óbvia, entendem os seus defensores que o Ministério Público deve ser o representante do Estado, já que a ele não lhe é permitido efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade ou ilegalidade do ato em causa (sendo um juízo que incumbe primariamente e em absoluto ao juiz[xvi]), tal como refere CLAÚDIA ALEXANDRA DOS SANTOS DA SILVA.
Nesse sentido, como o Ministério Público não tem competência para aferir da legalidade de atos administrativos a priori, isto significa que ele apenas só pode recusar a representação do Estado em situações extremas, como defende SÉRVULO CORREIA[xvii], com fundamento exclusivo numa evidente ilegalidade da pretensão do Estado, dando lugar à nomeação de um mandatário pela Ordem dos Advogados nessa situação, e não à impossibilidade absoluta de apresentação da ação.
Na posição oposta, os seus defensores sustentam que é inadmissível a representação do Estado pelo Ministério Público no caso de este ter de assumir posições não compatíveis com a legalidade, devendo, como tal, ser conferido ao Estado a possibilidade de escolha do seu representante.
Em primeiro lugar, não tenho dúvida alguma que, nos casos em que a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, se aplique a solução analógica do dito artigo 69º (sendo uma questão pacifica entre a doutrina) contudo, nos casos de dúbia legalidade tenho algumas reservas. Na minha opinião, considero que a posição de SÉRVULO CORREIA se apresenta a mais correta, pois o Ministério Público não pode atuar de maneira a fazer-se substituir à decisão final do juiz, sendo que, perante situações dúbias quanto à legalidade das pretensões do Estado, assim se deve manter a função de representação do Ministério Público.
No mesmo sentido ALEXANDRA LEITÃO afirma que se fosse possível o próprio Ministério Público “invocar a existência de uma ilegalidade, que lhe impõe o afastamento da sua função de representação do Estado, pode acarretar, por si só, um prejuízo para a posição deste na medida em que traduz um juízo de valor sobre a sua pretensão”.
Para concluir queria também mostrar a minha concordância com a autora quando menciona que o artigo 69.º do EMP assume um papel relativamente reduzido na resolução de eventuais contradições entre as funções de defesa da legalidade e de representação do Estado, porque este mecanismo serve apenas para os casos em que seja manifesta a ilegalidade da pretensão do Estado, acabando assim por ter um âmbito de aplicação muito reduzido[xviii].

  • Conclusão:
Este conflito é inevitável perante o atual mecanismo da representação obrigatória do Estado pelo Ministério Público, porque nas palavras de SÉRVULO CORREIA “Não é fácil emparelhar cada uma das funções no Contencioso Administrativo com os interesses públicos cuja prossecução o legislador lhes aponta.  Com efeito, embora, por definição, caiba ao Ministério Público prosseguir sempre o interesse público em sentido amplo, torna-se patente que o direcionamento finalístico não é rigorosamente idêntico quando impugna contenciosamente um ato administrativo de um órgão do Estado com fundamento na respetiva ilegalidade ou quando representa o Estado numa ação em que este seja autor ou réu.”
De iure condendo, defendo, claramente que a solução ideal para este conflito seria a que VIEIRA DE ALMEIDA[xix] propõe, a de que o Ministério Público deveria ter o seu papel circunscrito à defesa da legalidade, prosseguindo-a de modo objetivo e imparcial, como órgão auxiliar da justiça administrativa, deixando, como tal, de desempenhar a função de representante do Estado com o intuito de evitar as situações de confronto aqui em análise. Autores como ALEXANDRA LEITÃO, TIAGO SERRÃO[xx], entre outros, partilham o mesmo entendimento.


Bibliografia:
ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, in Revista Julgar nº20, Coimbra Editora, 2013;
ANTÓNIO NEVES RIBEIRO, “O Estado nos Tribunais”, Coimbra Editora, Coimbra, 1994;
CLÁUDIA ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, e-pública: revista eletrónica de direito público, “O Ministério Público no atual contencioso administrativo português”, 2016;
FRANCISCO NARCISO, “O Ministério Público na justiça administrativa”, in Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010;
JOSÉ OSÓRIO, “O Estado e o Ministério Público”, Separata do BMJ, nº68;
PAULA MARÇALO, Estatuto do Ministério Público Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2011   
SÉRVULO CORREIA, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001;
Site Oficial do Ministério Público, http://www.ministeriopublico.pt/pagina/area-administrativa;
TIAGO SERRÃO, A representação processual do Estado no Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, O Anteprojeto de Revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, Lisboa, 2014;
VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009
VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 12.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012.

Maria Catarina Silva Limpo 
nº26670




[i] SÉRVULO CORREIA, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 303.
[ii] PAULA MARÇALO, Estatuto do Ministério Público Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 31.
[iii] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao artigo 219º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010.
[iv] CLÁUDIA ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, e-pública: revista eletrónica de direito público, “O Ministério Público no atual contencioso administrativo português”, 2016.
[v] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p.303.
[vi] MESQUITA FURTADO et al., A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, ver p. 770.
[vii] JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 216.
[viii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p. 191.
[ix] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009, p. 271.
[x] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.º Edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 109.
[xi] ANTÓNIO NEVES RIBEIRO, “O Estado nos Tribunais”, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 29.
[xii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, pp. 206 e 207.
[xiii] FRANCISCO NARCISO, “O Ministério Público na Justiça Administrativa”, Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p.119, e INÊS SEABRA HENRIQUES DE CARVALHO, Em Defesa da Legalidade Democrática. O Estatuto Constitucional do Ministério Público Português, Minerva, Lisboa, 2011, p. 44.
[xiv] JOSÉ OSÓRIO, O Estado e o Ministério Público, Separata do BMJ, nº68, p. 6.
[xv] FRANCISCO NARCISO, “O Ministério Público na justiça administrativa”, in Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p. 119
[xvi] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do contencioso, administrativo e as funções do Ministério Público, pp. 317 e 318.
[xvii] SÉRVULO CORREIA et al., A reforma do contencioso, administrativo e as funções do Ministério Público, p. 317.
[xviii] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, p.200.
[xix] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 12.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 143
[xx] TIAGO SERRÃO et al., A representação, ver pp. 230 e 237.

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