1. Introdução
Ressalva-se, antes de
mais, que todos os artigos infra
mencionados constam do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(doravante CPTA), salvo referência em contrário.
O presente trabalho versará sobre o “contencioso pré contratual”, tal
como é designado no Título IV, Capítulo I, Secção II do novo CPTA, mas enquanto
uma espécie de ação administrativa urgente.
A temática dos
processos urgentes encontra-se ligada ao facto de estes se caraterizarem pela
sua celeridade quanto a questões que devam ter, num curto espaço de tempo, em
função de determinadas circunstâncias, uma resolução definitiva. Existe assim
uma necessidade de obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa que se
carateriza pelo seu caráter urgente, seguindo, por isso, uma tramitação célere
e, portanto, mais simplificada.
As impugnações urgentes
dividem-se em dois grupos: contencioso eleitoral, tal como consta do artigo 97º
e seguintes e o contencioso pré-contratual (artigo 100º e seguintes), sendo que
é sobre este último que incidirei.
O contencioso pré-contratual é aqui entendido como o conjunto de
garantias jurisdicionais de tutela dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares, face a atos administrativos e normas conformadoras
dos procedimentos de formação dos contratos públicos, que lesem esses mesmos
direitos ou interesses.
Da leitura do artigo 100º
e do artigo 46º/3, retiramos que o contencioso pré-contratual se reporta à impugnação
contenciosa de atos administrativos praticados no âmbito do procedimento de
formação de determinados tipos de contratos, e apenas desses.
Sendo este um processo de
impugnação urgente, o modelo de tramitação a seguir é o da ação administrativa
especial (artigo 78º e seguintes), com as especialidades do artigo 102º, que
limita a possibilidade da apresentação de alegações (nº2) e reduz os prazos a observar
ao longo do processo (nº3). Por outro lado, o autor pode proceder ao
alargamento do respetivo objeto do processo à impugnação do próprio contrato,
na hipótese de este vir a ser celebrado na pendência do processo de impugnação
(Arts. 102º/4 e 63º).
2. “Feira” das novidades:
2.1- No seguimento do Decreto-Lei nº 134/98, 15 de maio, o antigo CPTA apontava
para uma “solução minimalista, orientando o processo para situações em que se
pressupôs existir um imperativo decorrente do direito comunitário da
contratação pública”[1],
não incluindo, deste modo, outros contratos como o de concessão de serviços públicos,
o de concessão do uso privado, entre outros. Neste sentido, o artigo 46º/3, do
antigo CPTA, suprimia expressamente ao âmbito do contencioso pré-contratual
urgente, os litígios surgidos em procedimentos pré-contratuais que não dissessem
respeito aos contratos expressamente elencados no artigo 100º/1, do mesmo
diploma.
Ora, tal exclusão não
se coadunava com uma interpretação conforme ao Direito da União Europeia, nem
com o Direito substantivo, mais propriamente o Código dos Contratos Públicos
(Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de janeiro – doravante, CCP).
2.2 - Relativamente ao CCP, é relevante referir que, no que diz respeito ao
seu âmbito de aplicação, é mais amplo que o das Diretivas que transpôs, pois faz
referência a todos os contratos celebrados por entidades adjudicantes, nos
termos do seu artigo 2º.
Neste sentido e ao
olharmos para nova redação do artigo 100º/1, apercebemo-nos que manteve a
determinação dos procedimentos pré-contratuais abrangidos, em função da espécie
de contrato a celebrar como critério do âmbito do contencioso pré-contratual
urgente, limitando-se a incluir, na nova redação, o contrato de concessão de serviços
públicos, e a fazer dois aperfeiçoamentos formais, referindo, ao invés de
contratos de prestação de serviços e de fornecimento de bens, contratos de
aquisição de serviços e de aquisição de locação de bens. Esta solução não foi a
mais querida pela doutrina maioritária, que defendia que “todos os
procedimentos adjudicatários de direito público tendentes à celebração de
contratos ficassem sempre sujeitos ao regime do contencioso pré-contratual”[2]
o que, saliente-se, não equivale a uma extensão a todos os procedimentos adjudicatários.
Argumentos em sinal
contrário, apontam para a banalização da urgência ou a sobrecarga dos tribunais
administrativos em virtude de um ainda maior numero de processos o que, a meu
ver, se revela insuficiente para pôr em causa a solução maioritariamente
defendida.
Além do mais,
não obstante estes preencherem a maioria dos contratos levados a cabo pela
Administração Pública, a verdade é que, se nem o próprio CCP limita a aplicação
dos contratos referidos no artigo 16º/ º2, estamos perante um regime
pré-contratual urgente do CPTA, desprovido de uma tutela eficaz (tendo em conta
a especificidade pré-contratual) para outro tipo de contratos que, embora submetidos à concorrência do mercado,
não adotem a forma dos contratos elencados no artigo 100º/1.
Face a este assunto, a nível
doutrinal, temos duas correntes: uma a favor do sistema dual, defendendo que o
contencioso urgente deve ser limitado ao menor número de contratos possíveis,
de modo a assegurar uma resolução
célere destes processos.
Do outro lado, a doutrina que
discorda do sucesso do atual sistema dual, não entendendo o critério da fonte
europeia como o utilizado para distinguir entre os contratos que devem, ou não,
ser abarcados pelo contencioso urgente.
2.3 - Uma outra novidade paira sobre o seu cariz. Na anterior redação
do artigo 100º/1 do CPTA resultava que o contencioso pré-contratual era um
processo de cariz essencialmente impugnatório. Agora, “o contencioso
pré-contratual compreende as ações de impugnação ou de condenação à prática de
atos administrativos”.
2.4 - Outra modificação reside no
esclarecimento de que é possível a cumulação de pedidos no contencioso
pré-contratual. Embora o artigo 100º/3 do projeto de revisão do CPTA e do ETAF
tenha sido revogado, nada obsta a uma conclusão neste sentido, tendo em
consideração o disposto no artigo 103º/ 2 – “o pedido de declaração de
ilegalidade pode ser cumulado com o pedido de impugnação de ato
administrativo”. Apesar do silêncio do anterior regime, esta alteração não é
propriamente inovadora, na medida em que a doutrina e a jurisprudência já
tinham concluído pela admissibilidade da dedução de pedidos de condenação à
prática do ato devido e da cumulação de pedidos. Na verdade, a remissão feita na
parte final do artigo 100º/ 1 do anterior CPTA, em conjugação com o princípio
constitucional e legal da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20º/1 e 268º/ 4
da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º CPTA) permitia concluir
neste sentido.
2.5 - Em matéria de legitimidade a inovação
manifesta-se pelo facto de o artigo 103º/ 2 autonomizar o tratamento da
legitimidade para a impugnação de normas procedimentais. Antes da reforma, a
doutrina defendia que a legitimidade para a impugnação de normas deveria
aferir-se nos mesmos termos previstos para a aferição da legitimidade na
impugnação de atos administrativos [artigo 100º; 55/1 a); 68º/1 a)]. A
solução agora consagrada obsta àquilo que era defendido, na medida em que o
pedido de impugnação de normas procedimentais passa a ser consagrado num
preceito autónomo e alguns dos pressupostos processuais deste pedido são
distintos dos que vigoram para o pedido de impugnação de atos administrativos.
Em suma, o Decreto-Lei n.º
214-G/2015, de 2 de outubro veio reduzir as possibilidades de impugnação das
normas procedimentais, o que suscita dúvidas quanto à sua conformidade face ao
direito de tutela jurisdicional efetiva (cfr. Artigo 20º da Constituição da
República Portuguesa) e também face ao disposto nas Diretivas Recursos.
2.6- Também em matéria de tramitação,
que se encontra regulada no artigo 102º, se fez sentir esta reforma.
Desde logo, destaca-se a remissão
do nº 1, que substitui o regime dualista pelo monista. Através da leitura do
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, conclui-se que a
opção de se abandonar o modelo dualista que o CPTA consagrava é justificada por
motivos de praticabilidade do sistema e pela necessidade de dar resposta a
todos os processos declarativos não-urgentes do contencioso
administrativo. Assim, extinguiu-se a forma da ação administrativa comum e
reconduziram-se todos os processos não-urgentes do contencioso administrativo a
uma única forma de processo, a que é dada a designação de ação administrativa.
Anteriormente, o artigo 100º/ 1 in fine remetia para o regime da
ação administrativa especial, o que permitia definir o contencioso
pré-contratual como uma “espécie de ação administrativa especial urgente”. Com
a alteração trazida pela revisão do CPTA, esta afirmação deixa de fazer
sentido. O Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de outubro não modificou
significativamente a tramitação do contencioso pré-contratual, até porque o
caráter urgente não é alcançado apenas com um encurtamento do prazo de
propositura da ação. O que faltou, na verdade, foi a redução das fases
processuais, conferindo paralelamente ao juiz poderes reforçados na condução do
processo.
3. O que ficou por resolver
3.1 – Contratos
A acrescentar à falta
de um critério uniformizador para os procedimentos supra referidos, existem outros problemas.
Um desses problemas é
a exclusão do contrato de sociedade do âmbito do artigo 100º/1. Este é o único contrato
que, estando elencado a título exemplificativo no artigo 16º/2 do CCP, não está
abrangido pelo artigo 100º/1, sem razão aparente.
Outro, é a questão relativa
aos contratos mistos/complexos que continua por resolver. Isto porque se
estivermos perante um contrato que abranja prestações típicas de contratos compreendidos
no artigo 100º/1 e de contratos não abrangidos no mesmo artigo, não sabemos se
estes estão incluídos no âmbito do contencioso pré-contratual urgente.
Para uma parte da
doutrina, a posição a adotar é que “valerá o regime da parte mais relevante,
designadamente do ponto de vista económico-financeiro”; para outra, “o critério
essencial para determinar a sujeição do contrato misto ao regime do contencioso
pré-contratual é o da acessoriedade das prestações que estão associadas a
qualquer um dos tipos contratuais enumerados no artigo 100º/1. Quanto a esta
última posição, Carlos Candilha vem dizer que se pretende obviar a que se
introduzam prestações típicas de contratos abrangidos pelo contencioso pré-contratual
urgente por meras razões de conveniência, funcionalidade ou de caráter técnico.
A questão é, portanto, a de saber se estamos perante uma espécie contratual que
possa ainda ser reconduzida, nos seus elementos essenciais, a qualquer uma das
categorias nominadas a que se aplica o contencioso pré-contratual.
Já a jurisprudência,
tem adotado um critério mais flexível, entendendo que o contencioso pré-contratual
urgente é aplicável se pelo menos um dos tipos negociais combinados em
coligação ou contrato misto corresponder a uma das quatro categorias nominadas
do catálogo legal[3].
De forma sumária,
creio que se realmente existir uma contribuição objetiva da prestação em causa para
a fisionomia do contrato, então é deve ser aplicado o regime do contencioso
pré-contratual; caso não exista, não se aplica.
3.2 – Prazos
A celeridade, exigida pela diretiva
“Recursos” (Diretiva n.º 89/665/CE), vem estabelecer a necessidade de um processo
urgente no que respeita ao contencioso pré-contratual. Inicialmente, o DL nº
134/98 de 15 de maio, estabelecia um prazo de 15 dias, até à alteração
introduzida pela Lei nº 4-A/2009 de 19 de fevereiro, em que se aumento o prazo,
passando a um mês, tal como estipula a letra do artigo 101º.
Este prazo de um mês,
apresenta-se como um desvio ao regime geral estabelecido para a ação
administrativa especial, do artigo 58º. Isto porque, diferentemente do que
acontece no regime geral do artigo 58º, não é estabelecido nenhum prazo mais
alargado para o Ministério Público, estando igualmente sujeito ao prazo de 30
dias do artigo 101º.
Apesar
do prazo se ter mantido (um mês), quanto à sua contagem aditou-se uma remissão
expressa para os artigos 58º, 59º e 60º. Ou seja, a solução consagrada é a
mesma, apenas se clarificou a aplicação das figuras do justo impedimento e do
erro desculpável.
No entanto, o que é criticável é o facto de o legislador não ter tomado
posição no que concerne à aplicação (ou não) do prazo de um mês aos atos nulos.
Sendo que, o silêncio do legislador deve ser interpretado no sentido de
sujeitar a impugnação dos atos nulos ao prazo de um mês.
Recorde-se que a impugnação de normas procedimentais estaria sujeita ao prazo
de um mês estabelecido para a impugnação de atos administrativos. À luz do
artigo 103/ 3, o pedido de declaração de ilegalidade das normas contidas nos
documentos conformadores do procedimento pré-contratual “pode ser deduzido
durante a pendência do procedimento a que os documentos em causa se referem”.
Ou seja, enquanto o procedimento pré-contratual não tiver terminado, a
ilegalidade de qualquer das suas normas pode ser posta em causa em sede
judicial.
Este regime ainda se torna mais confuso tendo em conta o disposto no artigo 103º/
4, que remete para a possibilidade de impugnação e que suscita dúvidas quanto à
aplicação dos artigos 72º e seguintes.
Quanto
a isto a jurisprudência, em diversos acórdãos[4],
defende o prazo de um mês para a propositura da ação sob pena da preclusão do
direito. Assenta a sua posição na urgência da estabilização das relações pré-contratuais,
de forma a que, aquando a celebração do contrato, possa estar assegurada a
estabilidade e a legalidade da Administração para celebrar o contrato com o
adjudicatário escolhido.
No
entanto, grande parte da doutrina mostra-se reticente quanto à aplicação deste
prazo às ações dirigidas a declaração de nulidade do ato impugnado, na medida
em que tal situação levaria a que se perpetuassem na ordem jurídica atos
viciados com usurpação de poderes, incompetência absoluta, entre outros. O que
viciaria, também, todo o contrato a que as partes se propusessem a realizar.
Quanto a isto, creio que o prazo
de um mês se mostra razoável. Assim, acompanho a jurisprudência, quando defende
a aplicação do prazo de um mês tanto para a atos anuláveis, como para atos
nulos.
CONCLUSÕES
É perentório
reconhecer que parte do objetivo que era pretendido com a reforma está
completo, pois, através da inclusão do contrato de concessão de serviços públicos
no artigo 100º/1, foram transpostas as diretivas.
No entanto, não é compreensível
a razão da excessiva autolimitação do legislador. Com a devida vénia, a opção
mais adequada seria a de uma solução uniformizadora, congruente com o regime
substantivo. Até porque não esqueçamos que o objetivo último do contencioso pré-contratual
é o de evitar soluções de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil
reparação, seja para o cocontratante, seja para terceiros, pelo que, por um
lado, assenta num equilíbrio simultâneo entre a promoção da transparência e da concorrência
e, por outro, na garantia da estabilidade na execução dos contratos.
No entanto,
apesar do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro conformar o regime do
contencioso pré-contratual com a Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 11 de dezembro de 2007, não é seguro afirmar que a partir de agora
exista um efetivo reforço da eficácia dos meios contenciosos de controlo da
regularidade dos procedimentos pré-contratuais. Aliás, é provável que as
decisões judiciais passem a dar prevalência ao interesse público no confronto
com os interesses particulares.
É
ainda discutível, a vantagem da solução legislativa contida no artigo 103º-B,
na medida em que as medidas provisórias no âmbito do processo principal podem
ser adotadas com providências cautelares, requeridas nos termos do artigo 132º.
Ora, não é razoável haver uma duplicação processual e um agravamento da
complexidade.
Note-se
que os contratos públicos representam cerca de 18% do PIB da União Europeia. E
as indemnizações são, em norma, de valor muito avultado, pelo que é, em grande
medida, mais favorável, para a população, que os vícios se resolvam em sede
pré-contratual urgente.
Face
ao exposto, considero que o contencioso pré-contratual como procedimento
urgente que é, e face às exigências europeias decorrentes da Diretiva Recursos,
tem que ser rápido e eficaz, na resolução dos conflitos. Na medida em que a
falta de celeridade traria consigo, problemas de segurança e certeza jurídica,
que originariam graves problemas no âmbito das relações jurídicas contratuais.
Ana Beatriz de Almeida Simões
nº 26093
[1] Pedro Gonçalves, Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 62, 2007
[2] Rodrigo Esteves de Oliveira, O contencioso urgente da contratação pública, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 78, 2009.
[3] Acórdão do TCA do Sul, 17/09/2009, Processo nº 04800/09, Relator: Cristina dos Santos
[4] Acórdão do TCA do Sul, de 21/04/2005, Processo nº 645/05. No mesmo sentido, Acórdão do TCA do Sul, de 12/05/2005, Processo nº 756/05; Acórdão TCA do Sul, de 12/01/2006, Processo nº 1213/05.
________________________________________________________
Bibliografia:
- Almeida, Mário Aroso de, "Manual de Processo Administrativa", Almedina, Coimbra, 2013
- Andrade, José Carlos Vieira de, "A justiça Administrativa (lições)", 11ª edição, Almedina, Coimbra, 2011.
- Dias, Paulo Linhares, "O Contencioso Pré- Contratual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67 nº2, Lisboa, Setembro de 2007
- Gonçalves, Pedro, "Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente", in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 62, 2007
- Oliveira, Rodrigo Esteves de, "O contencioso urgente da contratação pública", in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 78, 2009
- Carlos Fernandes Cadilha/António Cadilha, "O contencioso pré-contratual e o regime de invalidade dos contratos públicos, Almedina, 2013
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