sábado, 16 de dezembro de 2017

O antes e o depois do contencioso pré-contratual urgente



1. Introdução
Ressalva-se, antes de mais, que todos os artigos infra mencionados constam do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), salvo referência em contrário.
O presente trabalho versará sobre o “contencioso pré contratual”, tal como é designado no Título IV, Capítulo I, Secção II do novo CPTA, mas enquanto uma espécie de ação administrativa urgente.
A temática dos processos urgentes encontra-se ligada ao facto de estes se caraterizarem pela sua celeridade quanto a questões que devam ter, num curto espaço de tempo, em função de determinadas circunstâncias, uma resolução definitiva. Existe assim uma necessidade de obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa que se carateriza pelo seu caráter urgente, seguindo, por isso, uma tramitação célere e, portanto, mais simplificada.
As impugnações urgentes dividem-se em dois grupos: contencioso eleitoral, tal como consta do artigo 97º e seguintes e o contencioso pré-contratual (artigo 100º e seguintes), sendo que é sobre este último que incidirei.
O contencioso pré-contratual é aqui entendido como o conjunto de garantias jurisdicionais de tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, face a atos administrativos e normas conformadoras dos procedimentos de formação dos contratos públicos, que lesem esses mesmos direitos ou interesses.
Da leitura do artigo 100º e do artigo 46º/3, retiramos que o contencioso pré-contratual se reporta à impugnação contenciosa de atos administrativos praticados no âmbito do procedimento de formação de determinados tipos de contratos, e apenas desses.
Sendo este um processo de impugnação urgente, o modelo de tramitação a seguir é o da ação administrativa especial (artigo 78º e seguintes), com as especialidades do artigo 102º, que limita a possibilidade da apresentação de alegações (nº2) e reduz os prazos a observar ao longo do processo (nº3). Por outro lado, o autor pode proceder ao alargamento do respetivo objeto do processo à impugnação do próprio contrato, na hipótese de este vir a ser celebrado na pendência do processo de impugnação (Arts. 102º/4 e 63º).

                2. Feira” das novidades:
2.1- No seguimento do Decreto-Lei nº 134/98, 15 de maio, o antigo CPTA apontava para uma “solução minimalista, orientando o processo para situações em que se pressupôs existir um imperativo decorrente do direito comunitário da contratação pública”[1], não incluindo, deste modo, outros contratos como o de concessão de serviços públicos, o de concessão do uso privado, entre outros. Neste sentido, o artigo 46º/3, do antigo CPTA, suprimia expressamente ao âmbito do contencioso pré-contratual urgente, os litígios surgidos em procedimentos pré-contratuais que não dissessem respeito aos contratos expressamente elencados no artigo 100º/1, do mesmo diploma.
Ora, tal exclusão não se coadunava com uma interpretação conforme ao Direito da União Europeia, nem com o Direito substantivo, mais propriamente o Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de janeiro – doravante, CCP).
2.2 - Relativamente ao CCP, é relevante referir que, no que diz respeito ao seu âmbito de aplicação, é mais amplo que o das Diretivas que transpôs, pois faz referência a todos os contratos celebrados por entidades adjudicantes, nos termos do seu artigo 2º.
Neste sentido e ao olharmos para nova redação do artigo 100º/1, apercebemo-nos que manteve a determinação dos procedimentos pré-contratuais abrangidos, em função da espécie de contrato a celebrar como critério do âmbito do contencioso pré-contratual urgente, limitando-se a incluir, na nova redação, o contrato de concessão de serviços públicos, e a fazer dois aperfeiçoamentos formais, referindo, ao invés de contratos de prestação de serviços e de fornecimento de bens, contratos de aquisição de serviços e de aquisição de locação de bens. Esta solução não foi a mais querida pela doutrina maioritária, que defendia que “todos os procedimentos adjudicatários de direito público tendentes à celebração de contratos ficassem sempre sujeitos ao regime do contencioso pré-contratual”[2] o que, saliente-se, não equivale a uma extensão a todos os procedimentos adjudicatários.
Argumentos em sinal contrário, apontam para a banalização da urgência ou a sobrecarga dos tribunais administrativos em virtude de um ainda maior numero de processos o que, a meu ver, se revela insuficiente para pôr em causa a solução maioritariamente defendida.
Além do mais, não obstante estes preencherem a maioria dos contratos levados a cabo pela Administração Pública, a verdade é que, se nem o próprio CCP limita a aplicação dos contratos referidos no artigo 16º/ º2, estamos perante um regime pré-contratual urgente do CPTA, desprovido de uma tutela eficaz (tendo em conta a especificidade pré-contratual) para outro tipo de contratos que, embora submetidos à concorrência do mercado, não adotem a forma dos contratos elencados no artigo 100º/1.
Face a este assunto, a nível doutrinal, temos duas correntes: uma a favor do sistema dual, defendendo que o contencioso urgente deve ser limitado ao menor número de contratos possíveis, de modo a assegurar uma resolução célere destes processos.
Do outro lado, a doutrina que discorda do sucesso do atual sistema dual, não entendendo o critério da fonte europeia como o utilizado para distinguir entre os contratos que devem, ou não, ser abarcados pelo contencioso urgente.
2.3 - Uma outra novidade paira sobre o seu cariz. Na anterior redação do artigo 100º/1 do CPTA resultava que o contencioso pré-contratual era um processo de cariz essencialmente impugnatório. Agora, “o contencioso pré-contratual compreende as ações de impugnação ou de condenação à prática de atos administrativos”.
2.4 - Outra modificação reside no esclarecimento de que é possível a cumulação de pedidos no contencioso pré-contratual. Embora o artigo 100º/3 do projeto de revisão do CPTA e do ETAF tenha sido revogado, nada obsta a uma conclusão neste sentido, tendo em consideração o disposto no artigo 103º/ 2 – “o pedido de declaração de ilegalidade pode ser cumulado com o pedido de impugnação de ato administrativo”. Apesar do silêncio do anterior regime, esta alteração não é propriamente inovadora, na medida em que a doutrina e a jurisprudência já tinham concluído pela admissibilidade da dedução de pedidos de condenação à prática do ato devido e da cumulação de pedidos. Na verdade, a remissão feita na parte final do artigo 100º/ 1 do anterior CPTA, em conjugação com o princípio constitucional e legal da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20º/1 e 268º/ 4 da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º CPTA) permitia concluir neste sentido.
2.5 - Em matéria de legitimidade a inovação manifesta-se pelo facto de o artigo 103º/ 2 autonomizar o tratamento da legitimidade para a impugnação de normas procedimentais. Antes da reforma, a doutrina defendia que a legitimidade para a impugnação de normas deveria aferir-se nos mesmos termos previstos para a aferição da legitimidade na impugnação de atos administrativos [artigo 100º; 55/1 a); 68º/1 a)]. A solução agora consagrada obsta àquilo que era defendido, na medida em que o pedido de impugnação de normas procedimentais passa a ser consagrado num preceito autónomo e alguns dos pressupostos processuais deste pedido são distintos dos que vigoram para o pedido de impugnação de atos administrativos.
Em suma, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro veio reduzir as possibilidades de impugnação das normas procedimentais, o que suscita dúvidas quanto à sua conformidade face ao direito de tutela jurisdicional efetiva (cfr. Artigo 20º da Constituição da República Portuguesa) e também face ao disposto nas Diretivas Recursos.
2.6- Também em matéria de tramitação, que se encontra regulada no artigo 102º, se fez sentir esta reforma.
Desde logo, destaca-se a remissão do nº 1, que substitui o regime dualista pelo monista. Através da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, conclui-se que a opção de se abandonar o modelo dualista que o CPTA consagrava é justificada por motivos de praticabilidade do sistema e pela necessidade de dar resposta a todos os processos declarativos não-urgentes do contencioso administrativo. Assim, extinguiu-se a forma da ação administrativa comum e reconduziram-se todos os processos não-urgentes do contencioso administrativo a uma única forma de processo, a que é dada a designação de ação administrativa.
         Anteriormente, o artigo 100º/ 1 in fine remetia para o regime da ação administrativa especial, o que permitia definir o contencioso pré-contratual como uma “espécie de ação administrativa especial urgente”. Com a alteração trazida pela revisão do CPTA, esta afirmação deixa de fazer sentido. O Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de outubro não modificou significativamente a tramitação do contencioso pré-contratual, até porque o caráter urgente não é alcançado apenas com um encurtamento do prazo de propositura da ação. O que faltou, na verdade, foi a redução das fases processuais, conferindo paralelamente ao juiz poderes reforçados na condução do processo.

                3. O que ficou por resolver

3.1 – Contratos
A acrescentar à falta de um critério uniformizador para os procedimentos supra referidos, existem outros problemas.
Um desses problemas é a exclusão do contrato de sociedade do âmbito do artigo 100º/1. Este é o único contrato que, estando elencado a título exemplificativo no artigo 16º/2 do CCP, não está abrangido pelo artigo 100º/1, sem razão aparente.
Outro, é a questão relativa aos contratos mistos/complexos que continua por resolver. Isto porque se estivermos perante um contrato que abranja prestações típicas de contratos compreendidos no artigo 100º/1 e de contratos não abrangidos no mesmo artigo, não sabemos se estes estão incluídos no âmbito do contencioso pré-contratual urgente.
Para uma parte da doutrina, a posição a adotar é que “valerá o regime da parte mais relevante, designadamente do ponto de vista económico-financeiro”; para outra, “o critério essencial para determinar a sujeição do contrato misto ao regime do contencioso pré-contratual é o da acessoriedade das prestações que estão associadas a qualquer um dos tipos contratuais enumerados no artigo 100º/1. Quanto a esta última posição, Carlos Candilha vem dizer que se pretende obviar a que se introduzam prestações típicas de contratos abrangidos pelo contencioso pré-contratual urgente por meras razões de conveniência, funcionalidade ou de caráter técnico. A questão é, portanto, a de saber se estamos perante uma espécie contratual que possa ainda ser reconduzida, nos seus elementos essenciais, a qualquer uma das categorias nominadas a que se aplica o contencioso pré-contratual.
Já a jurisprudência, tem adotado um critério mais flexível, entendendo que o contencioso pré-contratual urgente é aplicável se pelo menos um dos tipos negociais combinados em coligação ou contrato misto corresponder a uma das quatro categorias nominadas do catálogo legal[3].
De forma sumária, creio que se realmente existir uma contribuição objetiva da prestação em causa para a fisionomia do contrato, então é deve ser aplicado o regime do contencioso pré-contratual; caso não exista, não se aplica.

3.2 – Prazos
A celeridade, exigida pela diretiva “Recursos” (Diretiva n.º 89/665/CE), vem estabelecer a necessidade de um processo urgente no que respeita ao contencioso pré-contratual. Inicialmente, o DL nº 134/98 de 15 de maio, estabelecia um prazo de 15 dias, até à alteração introduzida pela Lei nº 4-A/2009 de 19 de fevereiro, em que se aumento o prazo, passando a um mês, tal como estipula a letra do artigo 101º.
Este prazo de um mês, apresenta-se como um desvio ao regime geral estabelecido para a ação administrativa especial, do artigo 58º. Isto porque, diferentemente do que acontece no regime geral do artigo 58º, não é estabelecido nenhum prazo mais alargado para o Ministério Público, estando igualmente sujeito ao prazo de 30 dias do artigo 101º.
                Apesar do prazo se ter mantido (um mês), quanto à sua contagem aditou-se uma remissão expressa para os artigos 58º, 59º e 60º. Ou seja, a solução consagrada é a mesma, apenas se clarificou a aplicação das figuras do justo impedimento e do erro desculpável.
          No entanto, o que é criticável é o facto de o legislador não ter tomado posição no que concerne à aplicação (ou não) do prazo de um mês aos atos nulos. Sendo que, o silêncio do legislador deve ser interpretado no sentido de sujeitar a impugnação dos atos nulos ao prazo de um mês.
         Recorde-se que a impugnação de normas procedimentais estaria sujeita ao prazo de um mês estabelecido para a impugnação de atos administrativos. À luz do artigo 103/ 3, o pedido de declaração de ilegalidade das normas contidas nos documentos conformadores do procedimento pré-contratual “pode ser deduzido durante a pendência do procedimento a que os documentos em causa se referem”. Ou seja, enquanto o procedimento pré-contratual não tiver terminado, a ilegalidade de qualquer das suas normas pode ser posta em causa em sede judicial.
         Este regime ainda se torna mais confuso tendo em conta o disposto no artigo 103º/ 4, que remete para a possibilidade de impugnação e que suscita dúvidas quanto à aplicação dos artigos 72º e seguintes.
       Quanto a isto a jurisprudência, em diversos acórdãos[4], defende o prazo de um mês para a propositura da ação sob pena da preclusão do direito. Assenta a sua posição na urgência da estabilização das relações pré-contratuais, de forma a que, aquando a celebração do contrato, possa estar assegurada a estabilidade e a legalidade da Administração para celebrar o contrato com o adjudicatário escolhido.
                No entanto, grande parte da doutrina mostra-se reticente quanto à aplicação deste prazo às ações dirigidas a declaração de nulidade do ato impugnado, na medida em que tal situação levaria a que se perpetuassem na ordem jurídica atos viciados com usurpação de poderes, incompetência absoluta, entre outros. O que viciaria, também, todo o contrato a que as partes se propusessem a realizar.
Quanto a isto, creio que o prazo de um mês se mostra razoável. Assim, acompanho a jurisprudência, quando defende a aplicação do prazo de um mês tanto para a atos anuláveis, como para atos nulos.

                CONCLUSÕES

É perentório reconhecer que parte do objetivo que era pretendido com a reforma está completo, pois, através da inclusão do contrato de concessão de serviços públicos no artigo 100º/1, foram transpostas as diretivas.
No entanto, não é compreensível a razão da excessiva autolimitação do legislador. Com a devida vénia, a opção mais adequada seria a de uma solução uniformizadora, congruente com o regime substantivo. Até porque não esqueçamos que o objetivo último do contencioso pré-contratual é o de evitar soluções de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação, seja para o cocontratante, seja para terceiros, pelo que, por um lado, assenta num equilíbrio simultâneo entre a promoção da transparência e da concorrência e, por outro, na garantia da estabilidade na execução dos contratos.
No entanto, apesar do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro conformar o regime do contencioso pré-contratual com a Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, não é seguro afirmar que a partir de agora exista um efetivo reforço da eficácia dos meios contenciosos de controlo da regularidade dos procedimentos pré-contratuais. Aliás, é provável que as decisões judiciais passem a dar prevalência ao interesse público no confronto com os interesses particulares.
É ainda discutível, a vantagem da solução legislativa contida no artigo 103º-B, na medida em que as medidas provisórias no âmbito do processo principal podem ser adotadas com providências cautelares, requeridas nos termos do artigo 132º. Ora, não é razoável haver uma duplicação processual e um agravamento da complexidade.
Note-se que os contratos públicos representam cerca de 18% do PIB da União Europeia. E as indemnizações são, em norma, de valor muito avultado, pelo que é, em grande medida, mais favorável, para a população, que os vícios se resolvam em sede pré-contratual urgente.
Face ao exposto, considero que o contencioso pré-contratual como procedimento urgente que é, e face às exigências europeias decorrentes da Diretiva Recursos, tem que ser rápido e eficaz, na resolução dos conflitos. Na medida em que a falta de celeridade traria consigo, problemas de segurança e certeza jurídica, que originariam graves problemas no âmbito das relações jurídicas contratuais.

Ana Beatriz de Almeida Simões
nº 26093


[1] Pedro Gonçalves, Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 62, 2007
[2] Rodrigo Esteves de Oliveira, O contencioso urgente da contratação pública, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 78, 2009.  
[3] Acórdão do TCA do Sul, 17/09/2009, Processo nº 04800/09, Relator: Cristina dos Santos
[4] Acórdão do TCA do Sul, de 21/04/2005, Processo nº 645/05. No mesmo sentido, Acórdão do TCA do Sul, de 12/05/2005, Processo nº 756/05; Acórdão TCA do Sul, de 12/01/2006, Processo nº 1213/05.

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Bibliografia:

  • Almeida, Mário Aroso de, "Manual de Processo Administrativa", Almedina, Coimbra, 2013
  • Andrade, José Carlos Vieira de, "A justiça Administrativa (lições)", 11ª edição, Almedina, Coimbra, 2011.
  • Dias, Paulo Linhares, "O Contencioso Pré- Contratual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67 nº2, Lisboa, Setembro de 2007
  • Gonçalves, Pedro, "Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente", in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 62, 2007
  • Oliveira, Rodrigo Esteves de, "O contencioso urgente da contratação pública", in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 78, 2009
  • Carlos Fernandes Cadilha/António Cadilha, "O contencioso pré-contratual e o regime de invalidade dos contratos públicos, Almedina, 2013




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