1. Introdução
A reconvenção é a pretensão autónoma
deduzida pelo réu de dado processo judicial contra o autor (ou terceiros que
venham a figurar como autores) desse mesmo processo judicial. A pretensão do
réu é autónoma porque diverge de uma de duas pretensões processuais intrínsecas
do réu: ser absolvido da instância ou ser absolvido do pedido. Diferentemente,
o réu reconvinte pretende com a dedução do pedido reconvencional uma utilidade
económica ou prática diferente da mera absolvição da instância ou da mera
absolvição do pedido.
A procedência do pedido
reconvencional contra a procedência do pedido principal é perspetivada como uma
forma de defesa daquele pedido, isto é, uma defesa contra ataque. Desta forma,
a doutrina processual tem vindo a denominar a reconvenção como uma ação cruzada
ou numa ação dentro de uma outra ação.
A autonomia da reconvenção revela-se na
circunstância de a improcedência da ação ou a absolvição do réu da instância
não obstar à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido em juízo,
isto é, quando este esteja relativamente ao pedido principal numa relação de
dependência ou de subsidiariedade imprópria – nº6 do artigo 266º do Código de
Processo Civil (CPC).
A reconvenção é qualificada como uma
faculdade processual e não um ónus. O réu tanto pode aproveitar o processo em
que figura como réu para deduzir o pedido reconvencional como pode deduzir
autonomamente a pretensão correspondente àquele seu direito em processo
destinado apenas ao seu julgamento, figurando como autor e não como reconvinte
– nº1 do artigo 266º do CPC. Assim, a reconvenção, apesar de ser uma forma de
defesa do réu, não é abrangida pelo ónus de concentração de toda a defesa na
contestação.
A natureza facultativa da reconvenção
traduz um equilíbrio entre a prossecução do interesse da economia processual e
da manutenção das condições necessárias para julgar a causa em tempo razoável.
O facto de a dedução do pedido reconvencional resultar numa cumulação de várias
pretensões num único processo, tornando-o mais denso e complexo e, deste modo,
mais difícil de resolver, tem vindo a carimbar a reconvenção como faculdade ou
direito do réu unicamente dependente da sua vontade, mediante a existência de
conexões entre pedidos processualmente específicas[1].
A regulamentação deste instituto
processual é dada pelo CPC, sendo que, no domínio do Contencioso Administrativo
apenas apareceu com a reforma de 2015, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº
214-G/2015 de 02/10, através do disposto no artigo 83º-A. Até a este marco
temporal legislativo, onde se expressamente se referiu a reconvenção pelo
Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos (CPTA).
2.
A reconvenção no Contencioso Administrativo
Como refere ELIZABETH FERNANDEZ, a
reconvenção é um verdadeiro “corpo
estranho” do processo administrativo, que não fez correr muita tinta no
passado no mundo do contencioso administrativo[2].
A autora também revela uma
transposição leviana do regime da reconvenção para o CPTA, pela ausência de
conexões específicas ao domínio administrativo, através da parca regulamentação
que se aduz do novo 83º-A, que se limitou a importar do regime processual
civil, a forma de introdução em juízo do pedido reconvencional. Como tal, a
solução passará pela aplicação subsidiária do artigo 266º CPC, por via do
artigo 1º CPTA, em tudo o que não se encontre especialmente regulado.
O ponto central onde queremos chegar
neste ensaio é o de averiguar a possibilidade de, perante a existência de uma
ação administrativa contra a Administração, esta última poder formular um
pedido reconvencional de execução contra o autor, aproveitando a ação.
3.
Excurso. O “fim” do Privilégio da Execução
Prévia
Há que ter em conta o novo regime do
CPA, nomeadamente quanto às regras da Secção V do Capítulo II da Parte IV do
diploma, em especial, à nova redação do artigo 176º e 183º. Com efeito, o
legislador manifestou uma vontade de extinguir o chamado “privilégio de
execução prévia”, passando a exigir da Administração a solicitação de um título
executivo dado pelos tribunais administrativos para executar, o que até então
não acontecia.
Apesar da intenção do legislador ter
passado para o corpo da norma do nº1 do artigo 176º do CPA, não lhe concedeu
operatividade imediata. Tal pode ser extraído através diploma preambular que
aprovou o novo CPA – número 2 do artigo 8º - que fixou um prazo de 60 dias a
contar da data de entrada em vigor do referido diploma para a aprovação de um
regime para regular as situações em que a Administração gozaria de um
privilégio de execução prévia. Neste regime transitório, seria aplicável o
disposto no nº2 do 149º do regime procedimental do diploma antecessor,
portanto, o CPA de 1991, que determina, em termos de princípio geral, a
autotutela executiva a favor da Administração Pública – art. 6º do já referido
diploma que aprova o CPA (DL nº 4/2015, de 7 de janeiro).
Como refere PAULO OTERO[3],
este regime transitório dado pelo CPA é inconstitucional, por violação da lei
de autorização legislativa concedida ao Governo[4].
Este não estava autorizado a manter a vigência de uma disposição do Código
anterior. Por sua vez, estava obrigado a definir os casos e as formas em que a
autotutela poderia ocorrer, o que tampouco aconteceu. Ao invés, o Governo
remeteu para diploma legislativo posterior uma tal incumbência, mantendo em
vigor o regime antigo, consubstanciando uma verdadeira atuação a descoberto da
lei habilitante.
O mesmo autor, baseando-se na
inconstitucionalidade de tal regime transitório, refere qualquer execução
coerciva pela Administração Pública dos atos administrativos será sempre
inconstitucional, salvo em casos de urgente necessidade pública. E tal inconstitucionalidade,
por revelar uma ausência de prévia intervenção judicial autorizativa, torna a
execução administrativa nula, por violação do princípio da separação de
poderes.
4.
Soluções possíveis
Bem vistos os planos substantivos, em
termos processuais, antes da entrada em vigor do novo CPA, não haveria grandes
dúvidas quanto à falta de interesse em agir por parte da Administração quando
intentasse ação nos tribunais administrativos para executar um administrado.
Tendo a Administração Pública um poder genérico para executar, o já chamado
“privilégio de execução prévia” ou “autotutela executiva”, inexistia um
interesse por parte daquela em intentar uma ação para este fim, visto que o uso
do meio processual era desnecessário para executar, atendendo ao poder que lhe
era atribuído por lei. Neste sentido, os tribunais apenas se debruçavam acerca
de questões suscitadas pelos executados contra as atuações administrativas, e
nunca por pretensões executórias por parte da Administração. Resumindo, o meio
processual em análise era irrelevante para a aferição da decisão pela execução.
Sendo irrelevante, não haveria interesse em agir. Sendo o nosso ponto a
reconvenção administrativa, inexistindo interesse em agir por parte da
Administração para intentar uma ação principal com pretensões executórias
contra um particular, tampouco inexistiria interesse em reconvir.
No panorama atual, e pelas
considerações acima descritas, apelamos a uma reconsideração do problema. Vimos
que o regime transitório do CPA quanto à execução administrativa oferece
grandes dúvidas de conformidade constitucional. No entanto, mesmo que se
propugne por tal desfecho, há uma ausência de soluções fixadas pela lei, visto
que o tal diploma que o Governo fixou como meta regulativa ainda não deu sinais
de desenvolvimento.
Poder-se-ia dizer que, a
Administração poderia iniciar uma praxis conforme à tal intenção do legislador
em dar primazia ao recurso prévio aos tribunais para exercer a sua atividade
executória, ficando esta na dependência de uma habilitação judicial para
proceder ao ato de execução. Esta interpretação retiraria da expressão do
legislador em inverter a situação regra de autotutela executiva um sentido
útil, que consubstanciaria na expurgação de um poder-dever que anteriormente
seria dado à Administração – o já referido privilégio de execução prévia. Neste
sentido, haveria um interesse em agir, quer através de uma iniciativa
administrativa junto dos tribunais para obter tal habilitação executória, quer
através da reconventio inserida
dentro de uma ação proposta por um particular, contra a ré Administração,
aproveitando o processo nos termos já examinados.
Em tese, o interesse em agir seria o
de afastar a aplicação do regime transitário, nos termos apontados acima por
PAULO OTERO, evitando a nulidade da execução por aplicação de uma norma
inconstitucional. O que se diz vale para a reconvenção, no entanto esta
enfrenta grandes obstáculos, no que toca ao regime processual administrativo.
Dentro desta interpretação, a solução
à questão formulada importa determinar se é possível à Administração, ceder ou
delegar, ou, se se preferir, renunciar à sua competência, em especial, a
executiva consagrada na Constituição e concretizada em lei ordinária,
procedendo, assim, com base num critério num critério de oportunidade, à
reorganização casuística da separação de poderes.
No entanto, é entendimento pacífico
da doutrina mais relevante que o a obtenção de título executivo por via de
reconvenção configuraria uma inadmissível renúncia à competência, sendo que a autotutela
executiva não é uma mera faculdade para a Administração, mas sim, um dever[5].
Sabemos, também, que a Administração,
por estar vinculada ao princípio da legalidade, não pode furtar-se a aplicar
uma norma ou solução legal, ainda que esta seja inconstitucional. A menos que
haja uma apreciação pelo Tribunal Constitucional que constate a
inconstitucionalidade através de uma declaração com força obrigatória geral, a
Administração não pode seguir outro caminho que não a da aplicação da norma inconstitucional,
atendendo à já referida vinculação ao princípio da legalidade, própria do
Direito Administrativo. O que se diz tem como corolário o princípio da
separação de poderes, isto é, a função de fiscalização de normas e a apreciação
da compatibilidade destas com a Lei Fundamental é apenas e só atribuída ao
poder judicial, e dentro do poder judicial, ao Tribunal Constitucional[6].
Assim, uma hipotética desaplicação,
por parte da Administração, de norma entendida como inconstitucional, constitui
em si, uma conduta contrária à Constituição, por violação aos princípios já
referidos.
Atendendo ao alvo do nosso estudo,
embora o regime transitório dado pelo artigo 6º e número 2 do artigo 8º do DL
4/2015, de 7 de janeiro seja inconstitucional, a Administração está vinculada a
atuar de acordo com o regime procedimental pretérito, ou seja, com o nº2 do
149º do DL 442/91, de 15 de novembro, alterado pelo DL 6/96, de 31 de janeiro.
O que se diz confirma, então, a manutenção do privilégio de execução prévia.
Continuando a existir tal privilégio,
pode continuar a afirmar-se que a Administração não detêm um interesse processual
em recorrer aos Tribunais Administrativos para executar os administrados. Com
os moldes já supra referidos, não tendo
a Administração tal interesse para propor uma ação (principal), tampouco terá
interesse em exercer a mesma prerrogativa através de uma causa reconvencional.
No entanto, podemos afirmar, que
embora a norma do artigo 176º CPA ainda seja uma verdadeira norma em branco, no
que toca à sua aplicabilidade, ela dita um ponto de rotura com o sistema
administrativo até então. A intenção do legislador em “retirar” do privilégio
da execução prévio o carácter de regra geral, admite uma judicialização da
atividade executória da Administração Pública.
Esta mudança de paradigma, ao
efetivar-se, implicará uma reconsideração nos planos examinados, ou seja, não
existirão grandes dúvidas em afirmar a existência de um interesse processual
por parte da Administração ao socorrer-se deste tipo de pretensões, assim como
também não haverá qualquer dos obstáculos já referidos à admissão de um pedido
reconvencional por parte da Administração que figura como demandada,
aproveitando, assim a propulsão dada pelo autor da causa.
Porém, levantam-se alguns problemas
de tramitação processual, pelo regime que foi instituído no CPTA, nomeadamente
o da possibilidade de reconvenção de pedidos tendentes a obter execução
enxertados em ações declarativas, designadamente naquelas em que o autor
impugna o ato de onde deriva a obrigação cujo cumprimento se pretende impor.
Neste aspeto, concordamos com a solução dada por ELIZABETH FERNANDEZ, que
entendemos ser a única – aplicação do nº3 do artigo 266º e nºs 2 e 3 do artigo
37º (todos do CPC).
[1] PAULA
COSTA E SILVA, “A natureza processual da
tutela do terceiro adquirente de boa-fé e a título oneroso. Excepção,
reconvenção e eficácia preclusiva do caso julgado” in “O Direito”, Ano
141º, 2009, I, págs. 224 e ss.
[2]
ELIZABETH FERNANDEZ, “A propósito e a
contexto da reconvenção nas ações administrativas” in “Comentários à Revisão do
CPTA e do ETAF, coord. CARLA AMADO GOMES, ANA FERNANDA NEVES E TIAGO
SERRÃO, 3ª Edição, 2017, AAFDL Editora, págs. 755 e ss.
[3] PAULO
OTERO, “Problemas constitucionais do novo
Código do Procedimento Administrativo – uma introdução” in “Comentários ao novo
Código do Procedimento Administrativo” – (Coord.) Carla Amado Gomes, Ana
Fernanda Neves, Tiago Serrão, 2015, 2ª Edição, AAFDL Editora, págs.17 e ss.
[4] Em
especial, atendendo à norma da 2ª parte da alínea ss) do artigo 2º da Lei nº
42/2014 de 11 de julho.
[5] RUI
GUERRA DA FONSECA, “O fundamento da
autotutela executiva”, págs. 705-706.
[6] Acerca
deste ponto, vide o Parecer
Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 17 de janeiro de 2013 em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/f1a5e96ed483a61980257a7c003d0674?OpenDocument&ExpandSection=-2
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