sábado, 16 de dezembro de 2017

O papel do Ministério Público na ação administrativa


O presente texto visa analisar o papel do Ministério Público na acção administrativa, pretende-se, na exposição que se segue, precisar as várias funções do Ministério Público no atual modelo de Contencioso Administrativo, atendendo à reforma de 2015. 
A principal alteração, de relevo para o estudo em causa, que a reforma de 2015 trouxe consigo foi a extensão da possibilidade de o Ministério Público intervir agora em todos os processos que sigam forma de acção administrativa, um âmbito mais alargado do que sucedia anteriormente dado que no anterior regime, este apenas podia intervir nas ações que seguissem a forma de ação especial. 
Na ação administrativa o Ministério Público pode então desempenhar várias funções que resultam, de modo genérico, do quadro do 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF). Daqui resulta que o Ministério Público terá a função de representar o Estado, de defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público. Para o desempenho destas funções ser-lhe-á atribuído pela lei um conjunto de poderes, em particular, para a defesa da legalidade democrática (a mais relevante das suas funções), o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) atribui-lhe legitimidade ativa nas várias ações administrativas, no exercício da chamada ação pública. 
Cumpre agora analisar, em concreto, cada uma das referidas funções.
Em primeiro lugar refira-se a função do Ministério Público enquanto representante do Estado, isto é, é-lhe incumbida a representação do Estado naquelas ações onde este figure como parte. Esta função decorre, desde logo, dos artigos 219º/1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), 51º ETAF, 11º CPTA e 1º do Estatuto do Ministério Público, Lei 47/86 (doravante EMP). Os artigos mencionados fazem referência apenas à representação do Estado e não de outras entidades públicas, contudo, decorre do artigo 5º/1 e 3º/1 do EMP que o Ministério Público também representa as regiões autónomas e as autarquias locais. Porém, nem o CPTA nem o ETAF fazem menção a essa representação, o que tem levado alguns autores a considerar que, tratando-se o EMP de uma lei anterior, o facto de o 51º ETAF fazer referência apenas à representação do Estado deveria conduzir a uma derrogação parcial, isto é, excluindo a representação das autarquias locais e das regiões autónomas, neste sentido MESQUITA FURTADO. Mas a correta interpretação deve ser feita noutro sentido, como decorre do artigo 5º/1 EMP, o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando se verifique uma das situações mencionadas nas alíneas a) a g), desde logo, da alínea a) decorre que o Ministério Público irá ter intervenção principal nos processos em que o Estado seja parte, surgindo como representante orgânico e obrigatório deste. Resulta pois do artigo 5º/2 EMP que a intervenção do Ministério Público, a título principal, cessa quando seja constituído mandatário nos casos das autarquias locais e das regiões autónomas, do artigo 5º/3 do mesmo diploma resulta que a representação a título principal cessa ainda no caso dos incapazes e ausentes em parte incerta caso os seus representantes legais se oponham a esta por requerimento no processo. Assim, compreende-se que no caso das autarquias locais, regiões autónomas, tal como no caso os incapazes ou ausentes em parte incerta, o Ministério Público tem uma intervenção facultativa. Deve seguir-se portanto o entendimento de SÉRVULO CORREIA, que interpreta os referidos preceitos afirmando que a representação do Estado será obrigatória, a passo que a das autarquias locas e das regiões autónomas poderá ser afastada por vontade dos seus órgãos competentes através de constituição de mandatário. Daqui decorre uma diferença substancial no tipo de representação, no caso das regiões autónomas e autarquias locais, trata-se de uma questão de patrocínio a passo que na representação do Estado poder-se-á falar de uma representação orgânica, na media em que se trata de um órgão estadual e não estamos em sede de uma representação voluntária mas sim de uma representação que decorre diretamente de uma imposição constitucional do artigo 219º/1 primeira parte da CRP, ao enunciar as funções do Ministério Público, não se trata portanto de uma representação opcional. 
É importante referir que a atuação do Ministério Público em representação do Estado, não se pode confundir com a sua atuação no exercício da ação pública (que será tratada infra). Na acção pública o Ministério Público atua em defesa dos interesses que lhe cumpre defender. Daqui resulta uma problemática que tem sido bastante discutida na doutrina, que dada a sua amplitude poderia ser objeto de uma análise autónoma, pelo que não será aqui abordada de forma exaustiva mas não se pode deixar de lhe fazer referência. Essencialmente, nos casos em que a atuação administrativa seja ilegal ou de duvidosa legalidade, o Ministério Público está perante uma encruzilhada, isto porque, por um lado tem o ser dever de defender a legalidade democrática, por outro lado também lhe incumbe a função de prossecução do interesse público. Como já foi acentuado, a questão tem dividido a doutrina, tendo mesmo sendo questionado se, no âmbito do contencioso administrativo, o Ministério Público deveria ser excluído da função de representação do Estado afim de assegurar a sua função de defesa da legalidade, neste sentido VIEIRA DE ANDRADE, ALEXANDRA LEITÃO e TIAGO SERRÃO. Uma corrente doutrinária sustenta que o artigo 69º do EMP é suficiente para resolver esta questão e sustentam que deve ser feito um juízo de ilegalidade prévio, não a título definitivo mas um juízo que poderia ser feito por qualquer sujeito, e se concluísse de modo afirmativo (pela existência de ilegalidade) deverá abster-se de representar o Estado e dar prevalência à sua função de defesa da legalidade. Nos casos em que a ilegalidade não seja flagrante, este juízo já não pode ser feito, pois o Ministério Público não tem competência para o fazer, essa competência cabe exclusivamente ao juiz, portanto, deve manter-se a representação. No pólo oposto, uma corrente doutrinária defende que sempre que possa ocorrer, ainda que eventualmente, uma colisão entre estas duas funções do Ministério Público, a representação deve sempre cessar pois não seria admissível que o Ministério Público assumisse posições incompatíveis com a legalidade. Como refere SÉRVULO CORREIA, a solução que se encontra vertida na letra do artigo 69º do EMP, deve ser reservada a casos extremos, pelo que não será sempre aplicável. Contudo, este tema não se encontra desprovido de complexidade, pelo que não cai no âmbito desta análise fazer referência a todas as posições nem adotar uma posição concreta nesta questão, mas não podia ser posta de lado e cabe portanto concluir dizendo que, a posição defendida pela maioria da doutrina é precisamente de que o dever de defender a legalidade deve sobrepor-se à função de representação do Estado, devendo esta última cessar quando as duas se encontrem em contraposição, dado que a atuação do Ministério Público deve ser sempre no sentido de seguir o critérios de legalidade, objetividade e imparcialidade, esta solução é a que melhor se coaduna com as funções legalmente atribuídas ao Ministério Público e parece ser o sentido para onde aponta o artigo 69º do EMP.

Além da representação do Estado supra referida, cabe referir agora o artigo 219º/1 in fine  da CRP, do qual resulta que cumpre ao Ministério Público a defesa da legalidade democrática, tal função resulta também do artigo 1º EMP. O CPTA reconhece ao Ministério Público amplos poderes para propor ações nos tribunais administrativos, é lhe atribuída legitimidade ativa no exercício da acção pública, para efeitos de defesa da legalidade, do interesse público de interesses difusos e interesses fundamentais. É no domínio da acção pública, que é reconhecida ainda ao Ministério Público legitimidade ativa  para efeitos de propositura de acções. Cumpre agora referir cada um dos casos em que o CPTA atribui legitimidade ativa ao Ministério Público. O primeiro artigo do CPTA a fazer esta atribuição é o 55º/1/b), do qual resulta que o Ministério Público tem legitimidade para impugnar atos administrativos. Segue-se o artigo 62º/1 CPTA, do qual resulta que tem legitimidade para assumir papel de autor, no exercício da ação pública, requerendo o seguimento do processo que, por decisão ainda não transitada em julgado, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor. Tem também legitimidade para propor ação de condenação à pratica de ato administrativo nos termos do artigo 68º/1/b) CPTA; tem legitimidade para requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa, artigo 73º/1 CPTA e terá ainda legitimidade quando se trate de norma cuja aplicação dependa de ato administrativo posterior, mediatamente operativa, artigo 73º/3 CPTA. Cumpre referir o artigo 73º/4 CPTA, dado que aqui não estamos perante um mero caso de legitimidade ativa, mas sim de um dever imposto ao Ministério Público, daqui decorre uma verdadeira obrigação de “pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, bem como de recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral”, solução que se encontra numa estreita ligação com a sua função de defesa de legalidade democrática constitucionalmente prevista.
O Ministério Público, terá também legitimidade para, nos termos do artigo 77º/1, pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas que sejam necessárias para que os atos legislativos, carentes de regulamentação, se tornem exequíveis. Terá também legitimidade para interpor ação destinada a apreciar a validade total ou parcial dos contratos, artigo 77º-A/1/b) CPTA e, ainda no mesmo artigo, é lhe conferida legitimidade para deduzir pedidos relativos à execução de contratos, artigo 77º-A/3/c) CPTA. Segundo o artigo 104º/2 CPTA, tem legitimidade para requerer intimação para a prestação de informações, consulta de processos e registos administrativos da acção pública. Tem também legitimidade ativa para requerer providências cautelares, artigo 112º/1 CPTA e ainda, quando seja parte num processo principal, o Ministério Público é dotado de legitimidade ativa, pelo artigo 113º/5 CPTA, para requerer o seguimento de um processo cautelar que esteja ligado àquele processo principal. Decorre do 130º/2 CPTA que o Ministério Público pode pedir a suspensão, com força obrigatória geral, de qualquer norma à qual tenha sido deduzido ou se proponha deduzir pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. É lhe também reconhecida legitimidade ativa para interpor recurso ordinário de uma decisão jurisdicional proferida por Tribunal administrativo contanto que essa decisão tenha sido proferida em violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais, artigo 141º/1 CPTA. Nos termos do artigo 152º/1 CPTA, o Ministério Público pode dirigir-se ao Supremo Tribunal Administrativo e fazer um pedido de uniformização de jurisprudência nos termos previstos no artigo, tem igualmente legitimidade para requerer revisão de sentença transitada em julgado com qualquer dos fundamentos do Código de Processo Civil, conforme a previsão do artigo 155º/1 CPTA. Por último, os artigos 164º/1 e 176º/1 CPTA prevêem a petição de execução, isto é, quando a administração não dê execução espontânea à sentença no prazo estabelecido pelo art 162/1 CPTA e estejam em causa os valores referidos no artigo 9º/2 CPTA, pode pedir ao tribunal que proferiu a sentença em primeiro grau de jurisdição, a execução da mesma.
De entre todas estas possibilidades, assume papel de grande relevo a legitimidade conferida pelo artigo 9º/2 CPTA, a chamada acção popular “Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelas destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais” o Ministério Público pode intervir aqui então na defesa dos interesses difusos constitucionalmente protegidos, trata-se de uma norma que atribui legitimidade processual ativa genérica para a proteção dos interesses nela referidos, que será necessária quando não se esteja perante um dos casos anteriormente referidos mas existam bens ou interesses que, dada a sua importância, não podem deixar de ser acautelados.
Apesar de extensa, esta enumeração é necessária, pois dela resulta que esta função de defesa da legalidade democrática opera quase como um dever de fiscalizar as entidades públicas, visando remover do ordenamento jurídico aqueles atos indevidos e substitui-los por outros que deviam ter sito tomados. É possível compreender que, a legitimidade ativa reconhecida ao Ministério Público no CPTA, se coaduna perfeitamente com a função que lhe é constitucionalmente atribuída de defender a legalidade democrática.

Por último, mas não menos relevante, temos a intervenção do Ministério Público nos processos em que não é parte. Esta função surge enunciada no artigo 85º CPTA, foi precisamente neste ponto que se fez notar a reforma de 2015, como já referido supra, agora a possibilidade de intervenção, por parte do  Ministério Público, foi estendida a todas as acções administrativas e não apenas às que seguem forma especial (visto que a reforma pôs fim à dicotomia anteriormente existente). Esta intervenção tem em vista a melhor aplicação de direito e esclarecimento de factos, assim refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA.  Esta intervenção poderá traduzir-se num parecer sobre o mérito da causa a exprimir uma opinião sobre a decisão que deva ser tomada pelo tribunal, ou num requerimento a solicitar a realização de diligências instrutoras nos termos em que seja admitido pelo artigo 85º/3 CPTA. No regime que precede a reforma de 2015, o Ministério Público tinha dois momentos de intervenção necessária, a emissão do visto inicial e do visto final, em que teria ainda possibilidade de suscitar questões de índole processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa. No regime atual, não só a intervenção não é obrigatória, pois deve circunscrever-se aos casos em que tal se justifique em função da matéria em causa (artigo 85º/2), como também só ocorre uma vez em cada processo e deve versar apenas sobre questões de carácter substantivo. Ao analisar o artigo 85º/2 não podemos descurar do artigo 9º/2, isto é, para saber se a emissão de parecer por parte do Ministério Público é, efetivamente devido, cabe identificar o particular interesse que deve ser protegido, dito de outro modo, o Ministério Público deverá intervir (emitir o seu parecer) quando uma decisão, por parte de um Tribunal Administrativo, seja suscetível de por em causa certos valores que devem ser defendidos por aquele. Assim para que o Ministério Público possa intervir em processos dos quais não é parte, de iniciativa de outros sujeitos processuais, é necessário que esteja preenchido algum dos requisitos do artigo 85º/2: defesa de direitos fundamentais; interesse público especialmente relevante; algum dos valores ou bens referidos no artigo 9º/2 CPTA. 
Foi já referido supra que os poderes do ministério público no que toca a intervenção nos processos de que não é parte foi estendido a todas as ações administrativas não tendo ficado agora limitado àquelas que seguem a forma especial. Esta premissa, apesar de correta, pode conduzir à ideia errónea de que os poderes do Ministério Público foram estendidos com a reforma de 2015, contudo, tal não se pode afirmar. Ao contrapor os regimes, vemos que, de facto, os poderes foram restringidos, desde logo pela intervenção única que foi já referida (em contraposição com a necessidade de intervir duas vezes) e pela restrição da sua pronúncia ao mérito da causa que no regime anterior também podia ser feita em relação a questões processuais. No fundo a extensão a todas as ações foi apenas uma consequência de se ter posto fim à dicotomia ação comum/ação especial.

Bibliografia:
AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013 
MESQUITA FURTADO, Leonor, A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo
PEREIRA DA SILVA, Vasco O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009
SANTOS SILVA, Cláudia Alexandra dos, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, e-Pública / ICJP-FDUL







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