Com a reforma
administrativa de 2002/2003 surge um novo mecanismo processual no Direito
Administrativo Português, o reenvio prejudicial. Este vem consagrado no artigo
93º do Código do Processo Administrativo (doravante CPTA), conjuntamente com o
artigo 25º, 2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (adiante
ETAF).
Trata-se de um mecanismo
disponível aos tribunais de primeira instância para submeter uma questão de
direito para apreciação do Supremo Tribunal Administrativo, de maneira a que o
juiz do processo aplique aos factos a norma ou normas com o sentido que o
Supremo Tribunal Administrativo lhe deu
Comecemos pelos
ordenamentos jurídicos que serviram de inspiração para o surgimento desta
figura processual, sendo neste caso o próprio Direito da União Europeia e o
ordenamento jurídico francês.
No Direito Comunitário o instituto do reenvio judicial surge a fim de assegurar a aplicação conforme do Direito Nacional e do Direito da União Europeia. Num caso em que há a necessidade de conjugar dois Direitos, embora maioritariamente semelhantes um ao outro, ambos de fácil aplicabilidade diferenciada, compreende-se a adopção de tal instituto como mecanismo de cooperação judiciária e, por conseguinte, uniformização jurisprudencial.
No Direito Comunitário o instituto do reenvio judicial surge a fim de assegurar a aplicação conforme do Direito Nacional e do Direito da União Europeia. Num caso em que há a necessidade de conjugar dois Direitos, embora maioritariamente semelhantes um ao outro, ambos de fácil aplicabilidade diferenciada, compreende-se a adopção de tal instituto como mecanismo de cooperação judiciária e, por conseguinte, uniformização jurisprudencial.
O Direito Francês, por
seu turno, também acolhe esta figura no seu sistema jurídico-administrativo,
mas com um regime jurídico consideravelmente diferente ao português. A decisão
do chamado Conseil d’État não é
vinculativa para os tribunais inferiores assemelhando-se, assim, a um parecer
por parte do Conseil.
Importa, neste sentido,
trazer à colação a Proposta de Lei que aprova o CPTA, que no seu ponto 13
refere e determina a ratio legis do
reenvio prejudicial. Na Proposta de Lei nº 92/ VIII este meio processual tem a
finalidade de “favorecer a qualidade das
decisões dos tribunais administrativos de círculo”, assim como alcançar uma
“uniformidade na resolução de diferentes
processos sobre a mesma matéria”.
Relata AROSO DE ALMEIDA
que este meio processual se insere no conjunto de opções de redistribuição de
competência entre os diferentes graus hierárquicos que a jurisdição administrativa
retrata, na medida em que a entrada em vigor do novo ETAF atribui competência a
tribunais de primeira instância para julgar um maior número de litígios.
Parece-nos que o reenvio
vai mais longe e procura estabelecer-se como um mecanismo compensatório na
repartição de competências dos tribunais administrativos. Não adoptamos uma
visão no sentido de que o reenvio vem prevenir a emissão de decisões
contraditórias. Antes cremos que, apesar de aceitarmos a ideia de que promove uma
pacificação nas decisões jurisdicionais, acentua a dependência entre tribunais
administrativos. O reenvio tenta compensar esta nova repartição de competência
na medida em que oferece ao Supremo Tribunal Administrativo um mecanismo de
fácil decisão vinculativa.
Nesta medida tentaremos expor
a nossa opinião, mais adiante, face aos efeitos da pronúncia do Supremo
Tribunal Administrativo.
Importa antes de mais
precisar, ainda que sumariamente, quais os requisitos necessariamente
preenchidos para que este meio processual posso ter continuidade:
a) “se coloque uma questão de direito nova” – a questão para apreciação do STA ainda não o
tenha sido anteriormente pelo STA, por dois ou mais acórdãos do TAC ou TCA. Significa
que não há lugar ao reenvio prejudicial se tiver havido pronúncia anterior suficientemente
esclarecedora;
b) “que suscite dificuldades sérias” – a razão para se solicitar a pronúncia do STA
não deve ser uma mera dificuldade do TAC em resolver o caso, deve sim tratar-se
uma dúvida de interpretação séria e uma necessidade inultrapassável para a
decisão final que implique a ingerência do STA;
c) “possa vir a ser suscitada noutros litígios” – estar em causa um litígio que possa vir a
surgir em casos futuros; surge um pouco na sequência do requisito anterior,
também pela importância que o litígio terá no ordenamento jurídico
Entendemos e concordamos
com o carácter rígido dos pressupostos de admissibilidade do reenvio
prejudicial. Na medida em que implica uma pronúncia de um Tribunal Superior é
necessário, que a dúvida em questão seja de máxima importância.
Entremos agora na matéria
que nos levou a elaborar este trabalho e sobre a qual temos uma posição a
defender. A questão principal prende-se com os efeitos da pronúncia do STA.
Melhor, coloca-se a questão de saber qual a natureza da pronúncia por parte do Supremo
Tribunal Administrativo.
Fica o TAC obrigado a interpretar a norma ou normas a que se refere o reenvio prejudicial com o sentido que o STA lhe deu? Se sim, qual a abrangência no sistema jurídico-administrativo desta pronúncia em termos processuais futuros, assim como a nível jurisdicional?
Fica o TAC obrigado a interpretar a norma ou normas a que se refere o reenvio prejudicial com o sentido que o STA lhe deu? Se sim, qual a abrangência no sistema jurídico-administrativo desta pronúncia em termos processuais futuros, assim como a nível jurisdicional?
O artigo 93º do CPTA refere que o STA emite “pronúncia vinculativa dentro do processo sobre a questão”. Por outro lado, o artigo 25º, 2 do ETAF conhece a competência ao Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo para se pronunciar sobre o “sentido em deve ser resolvida, por um tribunal administrativo de círculo, questão de direito nova […].”. Nada mais adianta, portanto, o legislador sobre o sentido e âmbito dessa vinculação deixando ao critério do aplicador da lei.
Os efeitos da pronúncia têm
sido vivamente objecto de divergência doutrinária na realidade do sistema jurídico-administrativo
português. É neste sentido, que vamos expor a nossa opinião e determinar o
alcance da interpretação dos artigos 93º, 1b) CPTA e 25º, 2 ETAF conjugados.
A vinculatividade é
totalmente vertical? Impõe-se a todos os tribunais inferiores?
Um primeiro argumento é
histórico e tem por base a lei que aprova o ETAF. Esta referia-se ao “processo que o tribunal administrativo de círculo
tem em mãos”. Ora mediante esta disposição é inequívoco afirmar que o propósito
é o de cingir a intervenção do STA ao processo principal, isto é adoptar uma
aplicação restrita do instituto.
Um segundo argumento prende-se
com a letra do preceito utilizada pelo legislador. De acordo com o próprio
artigo 93º, 1 b) a pronúncia do Supremo é referente e vinculativa “dentro
do processo sobre a questão”. Daqui retiramos que a vinculatividade da pronúncia se
dirige particularmente àquele processo, e a mais nenhum.
Outro ponto que é
imperativo mencionar é a falta de publicidade no Jornal Oficial da pronúncia. A
ingerência do tribunal superior não tem de ser, por força da lei, mencionada
nem publicada no Jornal Oficial.
Enão, como devem os juízes de outros processos, outros tribunais e instâncias ter conhecimento de tal decisão do STA? A quantidade de questões práticas que este obstáculo levante são muito significativas e de difícil resolução. Poder-se-á impor aos restantes juízes o conhecimento da pronúncia?
Parece-nos que a reposta é negativa. Admitimos que se tratam de actos jurisdicionais vinculativos, pelo que a sua validade não depende de publicação. Mas não sendo a publicação obrigatória então o conhecimento também não o deve ser.
Enão, como devem os juízes de outros processos, outros tribunais e instâncias ter conhecimento de tal decisão do STA? A quantidade de questões práticas que este obstáculo levante são muito significativas e de difícil resolução. Poder-se-á impor aos restantes juízes o conhecimento da pronúncia?
Parece-nos que a reposta é negativa. Admitimos que se tratam de actos jurisdicionais vinculativos, pelo que a sua validade não depende de publicação. Mas não sendo a publicação obrigatória então o conhecimento também não o deve ser.
É certo e consensual entre
a doutrina e a jurisprudência que a decisão proferida pelo Supremo não vincula
o próprio. A decisão é dirigida ao tribunal que a submeteu para apreciação,
sendo que este último fica vinculado, mas o Supremo pode vir a alterar a sua
opinião na matéria futuramente.
Imaginemos o cenário em que o TAC faz uso do reenvio prejudicial, por força do 93º, 1b), e o STA se pronúncia com a devida competência atribuída pelo artigo 25º, 2 do ETAF. O TAC emite, findo o processo judicial, a sua sentença e posto isto a parte lesada interpõe recurso para o TCA e posteriormente para o STA. Chegado o caso ao STA este vem decidir num sentido diferente daquele da sua pronúncia.
Que sentido tem este livre arbítrio permitido ao STA?
Imaginemos o cenário em que o TAC faz uso do reenvio prejudicial, por força do 93º, 1b), e o STA se pronúncia com a devida competência atribuída pelo artigo 25º, 2 do ETAF. O TAC emite, findo o processo judicial, a sua sentença e posto isto a parte lesada interpõe recurso para o TCA e posteriormente para o STA. Chegado o caso ao STA este vem decidir num sentido diferente daquele da sua pronúncia.
Que sentido tem este livre arbítrio permitido ao STA?
Outra razão é a
importante vertente do reenvio prejudicial que recai no facto de o mesmo estar
ao critério do tribunal inferior. O TAC é livre de suscitar a questão, é livre
de enviar a questão para apreciação do Supremo Tribunal Administrativo e se
decidir não fazer uso da figura processual nada o obriga a fazer.
Fará sentido, perante um cenário em que dois Tribunais inferiores tenham dúvidas face a uma questão de direito, no qual um decide fazer uso do reenvio prejudicial e o outro não, que o primeiro, que diga-se de passagem, decidiu enviar a questão para o STA a fim de garantir a “qualidade das decisões dos tribunais administrativos”, fique vinculado a decidir de determinada maneira e o segundo tribunal já não?
Então aquele tribunal que, de maneira eficiente, preferiu conferir primeiro a posição do STA fica limitado a decidir, talvez até de maneira contrária? Isto porque, raro é que o tribunal inferior perante uma pronúncia do STA decida de maneira contrária à proferida pelo STA pela simples razão de que por via do recurso a decisão, em última instância, seria sempre no sentido daquilo que o STA proferiu.
Fará sentido, perante um cenário em que dois Tribunais inferiores tenham dúvidas face a uma questão de direito, no qual um decide fazer uso do reenvio prejudicial e o outro não, que o primeiro, que diga-se de passagem, decidiu enviar a questão para o STA a fim de garantir a “qualidade das decisões dos tribunais administrativos”, fique vinculado a decidir de determinada maneira e o segundo tribunal já não?
Então aquele tribunal que, de maneira eficiente, preferiu conferir primeiro a posição do STA fica limitado a decidir, talvez até de maneira contrária? Isto porque, raro é que o tribunal inferior perante uma pronúncia do STA decida de maneira contrária à proferida pelo STA pela simples razão de que por via do recurso a decisão, em última instância, seria sempre no sentido daquilo que o STA proferiu.
Aqui cumpre expor a
opinião de SÉRVULO CORREIA que coloca efetivamente a questão de saber se temos
diante nós uma cooperação entre juízes ou mesmo uma relação de dependência. O dito
Sr. Professor duvida a constitucionalidade da figura por pôr em causa a independência
dos tribunais, estipulada no artigo 203º da Constituição da República. O autor
realça a problemática no âmbito do reenvio prejudicial, pois o STA efetua uma ingerência
no exercício da função jurisdicional e efetivamente determina em que sentido
deve ser decidido e julgado. A mesma questão já não se coloca em sede de
recurso, pois aqui tanto o Tribunal inferior como o superior jugaram o caso no exercício
da sua competência própria.
Pelo acima exposto concluímos
que o artigo 93º, 1 b) deve ser interpretado de maneira restritiva. A pronúncia
do Supremo Tribunal de Justiça ainda que vinculativa deve cingir-se àquele processo.
Não abranger todos os processos futuros, nem mesmo os demais tribunais da
jurisdição sobre a mesma questão permite salvaguardar o princípio da independência
dos tribunais.
Acreditamos ainda que este mecanismo processual de uniformização e pacificação deve ser objeto de uso mais frequentemente por parte dos tribunais hierarquicamente dependentes do STA.
Acreditamos ainda que este mecanismo processual de uniformização e pacificação deve ser objeto de uso mais frequentemente por parte dos tribunais hierarquicamente dependentes do STA.
Referências
bibliográficas:
- MÁRIO AROSOS DE
ALMEIDA, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”
- SÉRVULO
CORREIA, J.M., Direito do contencioso administrativo
- VÍTOR GOMES, “O reenvio
prejudicial para o Supremos Tribunal Administrativo: limites naturais ou
insucesso?”, em Cadernos de justiça administrativa, nº 101 (Set.-Out. 2013)
- MANUEL MARTINS, “O
reenvio prejudicial ao STA no novo contencioso administrativo”, em Estudos de
Direito Público
- Proposta de Lei
n~92/VIII, aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (revoga o
Decreto-lei nº 267/85, de 16 de Julho
- Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(revoga o DL n.º 129/84, de 27/4) e procede à 3.ª alteração do DL n.º 59/99, de
2/3, alterado pela Lei n.º 163/99, de 14/9, e pelo DL n.º 159/2000, de 27/7, à
42.ª alteração do Código de Processo C
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