segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Cartão Vermelho para a Arbitragem Necessária?

O Tribunal Arbitral do Desporto é criado – tendo como principal incentivador o Comité Olímpico de Portugal- devido à necessidade de resolução rápida e especializada dos conflitos desportivos decorrentes de uma nova conceção da ordem desportiva que nos últimos anos levou ao aumento da proposição de pretensões em tribunais em muito devido à mudança de paradigma da atividade desportiva, deixando de ser meramente lúdica, esta atividade profissional passou a envolver, por exemplo, valores patrimoniais muito elevados. 

Já antes da criação do TAD podemos falar de um "vínculo de justiça" traduzindo-se este no compromisso em que em, caso de lítigio,  o requerente dirigir-se-ia primeiro às entidades de justiça desportiva e só depois para os órgãos jurisdicionaissofrendo inclusivamente sanções disciplinares se não cumprisse esta obrigação. 

Quem advogava este vínculo de justiça entendia que o direito desportivo e o direito estadual deviam ser duas realidades separadas, muito devido à pouca celeridade de que padeciam os tribunais judiciais inquinando a resolução do conflito em tempo útil o suficiente para o mundo desportivo. Por esta razão só com autorização das entidades desportivas é que se podia recorrer aos órgãos estaduais. 

No dizer de Jorge Miranda e Rui Medeiros1 esta solução era desadequada, tratando a situação em causa do direito de acesso aos tribunais, este como direito fundamental, impunha que os particulares se pudessem fazer valer deste principio do Estado de Direitopor este motivo a reserva de jurisdição concretizada pelo vinculo de justiça seria inconstitucional. 

Gomes Canotilho2 atendendo as especificidades do ordenamento desportivo não recusava esta independência para os casos concretos que diziam respeito apenas a questões desportivas, porem recusava também a preclusão de acesso aos Tribunais quando estivesse em discussão direitos, liberdades e garantias.  

Assim, com o desejo de alcançar um meio termoque trouxesse uma solução a quem tanto preconizava pelas duas realidades antagónicas Portugal, através de uma intervenção legislativa em que,, no resto da Europa ainda não se encontrou semelhante instituiu o TAD, ficando o ordenamento desportivo fora do alcance total das federações, associações e outras entidades – excluindo questões puramente desportivas- ao mesmo tempo que não integrariam a esfera estadual.  

É importante antes de continuarmos a explanação referir que anteriormente á instalação do TAD, os conflitos desportivos estavam sob a alçada dos Tribunais Administrativos, porque apesar das entidades referenciadas serem de natureza privada a natureza pública dos poderes conferidos às federações desportivas e às ligas profissionais art. 18º LBAFD) determinava que os litígios  no âmbito do exercício dos poderes públicos, estavam sujeitos às normas do contencioso administrativo3assim nos últimos anos com a hipermediação da ordem desportiva entendeu-se que no âmbito dos seus poderes disciplinares e regulamentares estas seriam entidades privadas com poderes públicos logo a resolução dos litígios reconduzia-se aos Tribunais Administrativos. 

(In)Constitucionalidade 

Como afirma Artur Flamínio4 o "TAD tem natureza hibridanecessário quanto aos litígios de direito administrativo e voluntario enquanto tribunal arbitral que decide sobre litígios de direito privado" uma vez que a forma como se resolvem os conflitos varia consoante se trate da primeira ou segunda modalidade. Este autor classifica o TAD como um tribunal arbitral aparente, dado que a sua jurisdição quando não é voluntária é estabelecida por lei e por isso necessária, prescindindo dum momento volitivo em que as partes preterem os tribunais estaduais e se dirigem a sua atuação ao tribunal arbitral. 

É neste ponto que se vai centrar o tema deste trabalho: na imposição do legislador á submissão obrigatórias dos litígios em Tribunal Arbitral em detrimento dos estaduais, que numa primeira fase nem sequer guardava uma margem de controlo à ordem jurisdicional estadual. 

Numa abordagem lata do tema, fazendo um paralelismo com o tribunal arbitral dos medicamentos,  Paulo Otero5 defende a inconstitucionalidade da instituição de mecanismos de arbitragem necessária por quatro razões : i) Estado esta a renunciar ao exercício da função jurisdicional ii) estaria a privatizar o exercício da justiça -atendendo aos elevados custos que o Tribunal Arbitral pode gerar- iii) Estado estaria a desresponsabilizar-se da garantia dos direitos fundamentais iiiiprincipio da igualdade no acesso a justiça estaria a ser desrespeitado. 

Com a aprovação do Decreto 128/XII dúvidas sobre a sua constitucionalidade foram suscitadas, nem só por pessoas do Direito, mas também por muitas outras personalidades que foram escrevendo crónicas sobre como o diploma poderia estar inquinado deste vicio alertando para este problema. 

No prazo para promulgação, o ainda Presidente da República requereu a sua fiscalização preventiva ( 278.º, n.º 1 CRP, e artigos 51.º, n.º 1, e 57.º da Lei do Tribunal Constitucional) com fundamento na violação do principio da igualdade e na restrição desproporcionada de um direito fundamental. A resposta do Tribunal Constitucional (TC) originou o Acórdão 230/2013 fazendo com que este primeiro diploma fosse vetado por inconstitucionalidade dos artigos 8º/1 conjugado com os artigos nº4 e nº5  da LAV (de onde era parte integrante o TAD onde decorria que as decisões em única ou ultima instancia deste órgão eram insuscetíveis de recurso.  A imposição legal de uma jurisdição arbitral quando se tratasse de litígios que resultassem do exercido de poderes de autoridade conjuntamente com a proibição de acesso imediato aos Tribunais Estaduais iria contra uma Garantia dos administrados. O TC seguindo os artigos 13º/1, 20º/1, 268º/4 e 5 da CRP entendeu que a criação de Tribunais Arbitrais nunca poderia ir contra a garantia contenciosa dos particulares, os TA apesar de aqui previstos não poderiam ser a instancia final da cadeia decisória. 

TC reiterou que a existência de controlo de mérito é condição para a obrigatoriedade legal de Tribunais Arbitrais sem se lesar o direito fundamental da tutela jurisdicional efetiva. Por estas razões, voltando o diploma para reapreciação na AR tentou-se ultrapassar o problema modificando o art. 8º, assim passaria a existir um controlo de mérito por parte do STA quando estivesse em causa uma decisão da câmara de recurso e esta fosse sobre " a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".  Assim, só seriam permitidos dois tipos de recurso, uma para a Câmara do próprio Tribunal- recorrendo-se das decisões que sancionem infrações disciplinares ou que estejam em contradição com outra decisão- e destas, muito excecionalmente, para o STA. 

Contudo, depois de aprovada  Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro que cria o Tribunal Arbitral do Desporto e em anexo, a Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, voltou o PR a requerer a fiscalização, agora abstrata, deste diploma pelo TC. No Acórdão nº781/2013 veio o TC a declarar com força obrigatória geral as normas já anteriormente visadas, utilizando os mesmos fundamentos do Acórdão anterior e acrescentando "a vontade de recurso pode resultar de uma decisão arbitral que não satisfaça uma parte e esta deseje, legitimamente, ver a sua pretensão apreciada por um tribunal estadual, sem que tal pretensão possua a exigida relevância jurídica ou social". Indo até mais longe : "o princípio constitucional do acesso ao Direito e aos tribunais visa tutelar, entre o mais, posições jurídicas subjetivas, a título individual, as quais não podem ser deixadas sem proteção a pretexto de serem social ou juridicamente «irrelevantes»". 

O Recurso de Revista, previsto no art.150º do CPTA é uma normal excecional e dado que o critério para lá chegar e qualitativo e não quantitativo o que se tem verificado na prática é a recusa de admissão do recurso por não existir matéria de facto nas ações suficientemente importante para se acionar este instituto6, entendendo o TC que seria mais um entrave ao exercício do Direito de Acesso aos Tribunais. Neste tipo de recurso o STA está adstrito ao que já foi dito, o julgamento da matéria de facto cabe sempre ao TCA, logo  na prática o nº1 do artigo 8º da LAV seria uma norma vaziapara além de que seria o primeiro contacto com a justiça estadual, ao contrario do que acontece no procedimento administrativo em que é uma segunda instancia de recurso e um triplo grau de jurisdição. Como refere o TC " O recurso (excecional) de revista tem, pois, uma função predominantemente objetiva, porquanto não está orientado principalmente para a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, mas sim para a defesa de interesses comunitários. " logo a LAV ao não contemplar um mecanismo que dote os particulares da possibilidade de levarem as suas pretensões que relevam da vida comum a serem revistas por um órgão estadual estaria a ir contra a Constituição, quer pelas limitações impostas quanto às decisões recorríveis, quer pela excecionalidade dos requisitos de admissão do recurso de revista. 

Muitos autores apontam7 o facto de nunca o TC se ter pronunciado relativamente à questão suscitada pela violação do principio da igualdade, seguindo as considerações de Rui Medeiros8 sobre o assunto é preciso explicar que para podermos impor um Tribunal Arbitral como necessário é preciso que maiores razões se sobreponham a este principio, olhando para a forma como está organizado o mundo desportivo hoje em dia, para chegarmos a uma decisão de mérito em tempo útil e necessário que o assunto seja tratado de uma forma especializada e célere, assim se existirem mecanismos de reexame, não se vê o porquê de obstar a esta implementação. Note-se que uma questão a ser levantada é a das custas processuais porquanto serem muito mais elevadas em sede de Tribunal Arbitral e no domínio da obrigatoriedade poder fazer com que um particular não as consiga suportar e consequentemente deixe de sindicar a sua pretensão em Tribunal. 

Não ultrapassado o crivo do TC foi criada outra solução de maneira a conseguir cumprir todos os requisitos constitucionais na implementação de tão importante órgão. Hoje em dia o artigo 8º da LAV prevê 1) recurso para o Tribunal Constitucional 2) impugnação da decisão no TCA 3) recurso de mérito para o TCA Sul se as partes não obtarem pela Camara de Recurso e 4) recurso de revista para o STA. 

Primeiramente o acesso ao TAD   poderia ser feito depois de uma decisão dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas e ligas profissionais, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos atos ou omissões. Tratando-se de um principio de exaustão prévia dos recursos internos federativos, hoje em dia isto já não corre desta maneira, podendo-se passar diretamente de uma decisão do Conselho de Disciplina para o TAD. Se não se cumprir o âmbito de jurisdição estamos perante uma incompatibilidade absoluta em razão da matéria sendo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso.  

Câmara de Recurso 

A Câmara de Recurso é composta pelo Presidente do TAD e por 8 Árbitros que integrem a lista do TAD. Esta é um órgão de segunda instancia e a sua competência resulta de uma renúncia do recurso para o TCA, esta competência é meramente eventual e não prejudica muito excecionalmente o recurso das suas decisões para o STA. Para não existir parcialidades e obter uma decisão justa quem já tenha sido arbitro em primeira instancia não o pode voltar a ser, no âmbito do mesmo processo, em camara de recurso. 

Processo Arbitral 

Tudo o que não estiver regulado pela Lei especial deverá ser pelo CPTA, logo  TAD como tribunal especializado aplica regras e princípios de Direito Administrativo, acontece que à luz do novo código existem muitas incongruências entre os dois diplomas. Ana Celeste de Carvalho9 aponta o regime dos contrainteressados, do ónus da contestação e do processo administrativo como realidades que deveriam estar bem mais próximas de modo a não frustrar o principio de uma boa e justa administração de justiça para aqueles que são impelidos a acederem a este tribunal. 

A LTAD prevê que a falta de contestação não implique a admissão por acordo, solução em nada parecida ao CPTA que impõe o ónus de contestar com remissão para o CPC quanto aos efeitos da revelia. 

Ao contrário do CPTA que classifica os contrainteressados como parte processual e que o seu não chamamento à demanda implica ilegitimidade, a LTAD não prevê sequer estas figuras. 

Não prevê também o processo administrativo, parte importante da fase de instrução e prova, chegando a ser um dever da parte que o tem de juntar ao processo, o que seria benéfico para a celeridade que se requer deste órgão podendo em muitas situações levar a uma resolução de mérito da ação. 

Sendo este Tribunal uma entidade independente infra estadual tendo subjacente a desconcentração existem muitas outras caraterísticas que poderiam ser estudadas, tendo este comentário apenas focado uma das questões mais prementes, existem muitas outras a discutir, não obstante seguirá uma pequena compilação de alguns pontos: 

  • A sede do TAD é no mesmo sitio que a sede do Comité Olímpico, que porventura poderá ser parte num litigio. Onde esta a imparcialidade? Atendendo ao facto de que os desportistas costumam ser a parte mais fraca, questiona-se a independência do TAD. 

  • TAD é um órgão jurisdicional, contudo emite pareceres jurídicos que ao não serem vinculativos podem colidir com a credibilidade de futuras decisões. 

  • Composição em número par do colégio arbitral é suscetível de, em caso de não obtenção de maioria, bloquear a tomada de uma decisão. 

  • Falta de publicidade das decisões arbitrais vai contra o principio da administração da justiça 

Da realização deste comentário e da pesquisa que foi necessária para o fazer percebi que para o TAD vencer as criticas que lhe têm sido apontadas têm de reformular alguns pontos importantes como o modo de funcionamento e assegurando a devida imparcialidade sobe pena de total descredibilidade. Porém, acho que foi um passo importante para o mundo do Desporto a instituição deste órgão porque na teoria é o que melhor responde as necessidades dos seus destinatários na busca por uma decisão rápida o suficiente para que o "prejuízo" não tenha ainda sido causado o que muitas vezes não se consegue através da via jurisdicional tradicional. 

1- in Constituição Portuguesa Anotada
2-in Constituição da Republica Portuguesa Anotada
3- Pedro Gonçalves in Entidades privadas com poderes públicos
4- in Arbitragem e Direito Público, AAFDL 2016
5- citado por Rui Medeiros
6- Mário Aroso de Almeida in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos
7- Nomeadamente Artur Silva e Jorge Meirim
8- tratando da conformidade da arbitragem à Constituição
9- in Conferência: TAD um ano depois

Bibliografia:

GONÇALVES, Pedro: Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina 
MEIRIM, José: O Desporto que os Tribunais praticam, Coimbra Editora; Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, Introdução, referências e notas, Almedina
SILVA, Artur Flamínio: Arbitragem e Direito Público AAFDL O Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto Anotado e Comentado Petrony Editora; A Resolução de Conflitos Desportivos em Portugal Almedina; A arbitragem desportiva em Portugal : uma realidade sem futuro? : anotação ao acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constituciona in Direito e Desporto
MEDEIROS, Rui: Estudos de Homenagem ao Conselheiro Artur Mauricio Coimbra Editora
MIRANDA, Jorge e Medeiros, Rui: Constituição Anotada
CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital: Constituição da Republica Portuguesa Anotada
ALBUQUERQUE, Nuno: Tribunal Arbitral do Desporto: o importante não era justificar o erro, mas impedir que ele se repetisse, in Desporto & Direito, ano X, n.º 29


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