A questão de se saber se o Recurso Hierárquico
Necessário (doravante, RHN), analisado à luz da atual legislação administrativa
e das normas constitucionais, continua a ser um requisito da possibilidade de impugnação
contenciosa de atos administrativos – nos casos previstos especialmente na lei –
é uma das discussões doutrinárias mais acentuadas entre a doutrina portuguesa.
Na verdade, as querelas
doutrinárias foram sendo recorrentes no que diz respeito à matéria dos RHN.
Mesmo antes da reforma de 2002 já eram levantadas questões acerca da
constitucionalidade deste instituto - o
confronto de toda a ideia dos RHN com o disposto no artigo 268º, n.º4 da
Constituição da República Portuguesa (CRP), consagrado em 1976, fez com que as
opiniões se dividissem. Doutrina e tribunais discordaram muitas vezes quanto à
resposta a essa pergunta. Até hoje se pode afirmar que ainda não há harmonia
doutrinária no que diz respeito à solução deste “problema”.
Antes da reforma de 2002,
o RHN estava consagrado nos artigos 166º e seguintes do Código de Procedimento
Administrativo (CPA). O legislador do código então em vigor optou por condicionar
o acesso aos tribunais administrativo, por parte dos particulares, ao preenchimento
de três tipos diferentes de definitividade, – sendo esta definitividade, a “certeza” de que a entidade emissora do ato, em
todos os níveis hierárquicos, tinha esgotado todas as possibilidades de solução
do problema que levava o particular a impugnar o ato - : as definitividades
material, horizontal e vertical. O âmbito vertical deste requisito obrigava a
que o particular manifestasse a sua pretensão junto de todos os órgãos da mesma,
até fazer chegar a sua pretensão ao superior máximo, uma vez que só depois da
pronuncia deste acerca da mesma, é que o particular poderia optar por recorrer
aos tribunais administrativos, para fazer valer o seu direito através de
impugnação contenciosa. Esta característica foi apontada por alguns autores
como sendo um limite à “suposta” tutela efetiva dos direitos dos administrados que
se encontra consagrada na CRP.
No entanto, era essa mesma
ideia de esgotamento de toda as alternativas possíveis antes de se poder
recorrer ao contencioso que fez com que alguns autores se questionassem acerca
da constitucionalidade da questão. A CRP de 1976 veio constitucionalizar o
contencioso administrativo, procurando assegurar uma garantia do controlo jurisdicional
da administração (ao abrigo do disposto nos artigos 206º e 212º, n.º3 da CRP) e
a tutela dos interesses e direitos dos particulares que sejam legalmente protegidos
através do acesso aos tribunais administrativos.
O Professor Vasco Pereira
da Silva, defensor da inconstitucionalidade desta opção, já antes da reforma administrativa
de 2002 defendia que o instituto do RHN violava princípios fundamentais como a
tutela efetiva dos direitos dos particulares (artigo 268º, n.º 4 da CRP), o principio
da separação da administração e da justiça, o principio da desconcentração administrativa
(artigo 267º, n.º 2 da CRP) e, claro, o principio suprarreferido da efetividade
da tutela. Já Marcelo Rebelo de Sousa considerava os recursos administrativos
como mecanismos que permitiam o superior hierárquico exercer poderes de
supervisão e intervenção sobre todos os subalternos, através da possibilidade
da sua alteração mediante a vontade do próprio – o que aos olhos do Sr. Professor
faria sentido, uma vez que o superior máximo de uma entidade da administração se
encontra numa posição de especial responsabilidade e democraticidade.
Nessa altura, eram poucos
os autores que apoiassem a ideia da inconstitucionalidade dos recursos administrativos.
Os tribunais defendiam também a sua harmonia com os princípios do ordenamento.
Assim, só com a reforma
de 2002, e com a alteração do Código do Processo dos Tribunais Administrativos
(CPTA) que deixou de exigir o esgotamento de todos os recursos administrativos,
quando os atos possam ser diretamente objeto de impugnação pela via contenciosa,
como ficou pautado com o disposto no artigo 59º, n.º4 do CPTA (que se mantém
igual mesmo após a reforma de 2015).
Mas a extinção da imperatividade
dos recursos administrativos (até atingir a definitividade vertical), presente
no artigo 51º, n.º1 CPTA – que determina a impugnabilidade de qualquer ato administrativo
que possa violar direitos ou interesses doas pessoas e que produzam efeitos jurídicos
externos – não foi bem recebida por parte da doutrina. Freitas do Amaral crítica
a opção legislativa por defender que a mesma se pode concretizar numa “enchente”
dos tribunais administrativos, derivada de pretensões de particulares que poderiam
ser resolvidas com o recurso hierárquico. O professor afirma ainda que a
liberdade de acesso aos tribunais administrativos a nível cautelar, aliado ao efeito
suspensivo do ato administrativo que decorre desse mecanismo, pode resultar
numa total paralisação da administração.
No entanto, ao contrário
do que acontece hoje em dia, o CPA ainda previa que a primeira reação dos
particulares contra atos que fossem contra os seus interesses ou direitos era a
reclamação ou o recurso hierárquico. A reforma do CPTA trouxe alguma desarmonia
entre os dois códigos, o que motivou novas querelas no âmbito do instituto dos
recursos hierárquicos. Houve quem defendesse que o CPTA revogou as normas do
CPA que previam a necessidade do recurso administrativo antes de se recorrer à
via contenciosa. Já Mário Aroso de Almeida defendeu uma interpretação sistemática
e atualista das normas do CPA, de modo a que delas se retira-se a ideia da
possibilidade (e não obrigatoriedade) do legislador poder, em algumas normas de
caráter especial, optar pela obrigatoriedade de recurso administrativo prévio,
em determinados tipos de atos administrativos. Sempre fiel à ideia da inconstitucionalidade
dos RHN, o Professor Vasco Pereira da Silva preferiu defender a caducidade das
normas do CPA, por falta de circunstâncias que as justificassem.
A regra geral passou a
ser, na verdade, a da “desnecessidade” de recorrer aos meios de recurso
administrativo para que se possa recorrer aos meios contenciosos. Vasco Pereira
da Silva defende que ficou permanentemente afastada a necessidade de RHN sendo
sempre possível recorrer primariamente aos tribunais administrativos, sendo os
recursos administrativos definidos como uma faculdade concedida ao particular,
de acordo com os números 1, 3 e 4 do artigo 51º do CPTA. Por outro lado, Mário
Aroso de Almeida defende que a necessidade continua a existir, como regra
especial, desde a reforma de 2002: quando a lei expressamente o consagrar, pode
o prazo para recurso administrativo condicionar o acesso aos tribunais, uma vez
que nos casos em que os RHN sejam previstos por lei, a falta de recurso aos
mesmos pode determinar o efeito de preclusão, impedindo que o particular se
possa, depois, dirigir aos tribunais administrativos para fazer valer os seus
direitos. Assim, o autor defende que nessas situações, o interesse processual
do interessado se faz depender do esgotamento dos recursos administrativos, como
acontecia antes da reforma de 2002.
Estes casos especiais
fundamentar-se-iam principalmente na ideia de não fazer com que os tribunais
administrativos ficassem sobrecarregados com processos que poderiam ser facilmente
resolvidos em sede das entidades da administração.
Na verdade, penso que a
razão estaria com o Professor Aroso de Almeida: não só não podemos considerar a
necessidade de recurso hierárquico como sendo inconstitucional (uma vez que o
RHN não impede os particulares de recorrerem aos tribunais administrativos, exigindo
apenas o “preenchimento de pressupostos”, um ónus que se tem de verificar antes
que seja possível fazê-lo), como considero que, mesmo antes da elaboração do
novo CPA, a necessidade de recursos hierárquicos nos casos em que os mesmos
estivessem previstos na lei é um meio de “defesa” da administração contra o uso
descabido da via contenciosa para fazer valer pretensões que, muitas das vezes,
podem não justificar tal mobilização. Nas palavras de Paulo Otero, depois da revisão
do CPTA em 2002, passaram a ser os recursos necessários apenas “recomendáveis” –
afastou-se com a reforma do processo administrativo a regra geral da
necessidade da impugnação administrativa como pressuposto da impugnação
contenciosa. O interesse processual do particular não mais depende da definitividade
vertical do ato administrativo que pretende impugnar.
Importa referir que no
caso de se defender que todos os recursos hierárquicos passaram a ser meramente
facultativos depois da penúltima reforma do CPTA, opera a suspensão do prazo de
impugnação contenciosa do arigo 59º, n.º 4 CPTA, sendo que a regra não opera no
caso de se considerar que existem casos nos quais o recurso administrativo é
ainda necessário (em situações especiais), uma vez que nessas hipóteses não existe
possibilidade de recorrer aos tribunais antes de se esgotar os recursos
administrativos. Esta posição é a que encontra mais apoio na doutrina portuguesa.
A reforma de 2015 do CPTA
não veio trazer alterações ao regime dos recursos administrativos, sendo que
continua a operar a possibilidade de recurso aos tribunais sempre que o ato
seja impugnável (não dependendo essa impugnabilidade de prévio esgotamento dos
recursos administrativos, pelo particular que pretende impugnar o ato). A grande
diferença desta reforma em relação à de 2002, é que parece agora o CPTA encontrar
apoio no novo CPA. Este ultimo passa a ter previstos, nos artigos 184º e
seguintes recursos necessários e facultativos, em consonância com o que está
estipulado no CPTA desde a reforma de 2002 – nem um vestígio da obrigatoriedade
ou necessidade de recorrer aos recursos hierárquicos para que se possa estar
investido de interesse processual. A regra geral é, sem dúvida alguma, a da
desnecessidade de esgotamento de mecanismos prévios para que se possa enveredar
pelo caminho contencioso – os atos são impugnáveis com o simples preenchimento
do artigo 51º, n.º 1 do CPTA.
Passam a ser os RHN situações
especiais face à regra geral que opera tanto no CPTA como no CPA. Assim, de
acordo com a posição do Professor Mário Aroso de Almeida, “na ausência de determinação
legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os atos administrativos
são imediatamente impugnáveis perante os tribunais, sem necessidade da prévia
utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas
continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária
nos casos que isso seja expressamente previsto na lei, em resultado de uma
opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considera justificada”.[i]
Concluindo, parece defensável
que hoje em dia o recurso administrativo se apresenta como uma faculdade dada
ao particular, que se pode definir como útil na luta contra a sobrelotação
processual dos tribunais administrativos – nos casos em que a lei preveja uma
exigência expressa do esgotamento dos mecanismos administrativos para o
preenchimento do pressuposto “interesse processual” do particular, a possibilidade
de recorrer a vias contenciosas parece depender desse preenchimento. Não defendo
uma posição que considere inconstitucional a exigência desta tramitação em
certas situações, uma vez que, como já ficou acima escrito, não determina a
mesma um impedimento ao acesso aos tribunais, mas tão só um ónus que é dado ao
particular que deve ser preenchido para que se possa verificar esse acesso.
Maria Beatriz Costa Monteiro
22124
Maria Beatriz Costa Monteiro
22124
[i] Ref. na
pág. 355, em O Contencioso Administrativo
no Divã da Psicanálise.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2ª edição, 2016
AMARAL,
Diogo Freitas do, Considerações Gerais
Sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Trabalhos preparatórios in Reforma do Contencioso Administrativo
ANDRADE,
José Carlos, A Justiça Administrativa, 10ª Edição,
Almedina, 2015
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª
edição, 2009
SILVA, Vasco Pereira da, De Necessário a Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo
Contencioso Administrativo, in
Julgar
Sem comentários:
Enviar um comentário