sábado, 16 de dezembro de 2017

De Necessário a Útil: O Recurso Administrativo como Pressuposto da Impugnação Contenciosa

A questão de se saber se o Recurso Hierárquico Necessário (doravante, RHN), analisado à luz da atual legislação administrativa e das normas constitucionais, continua a ser um requisito da possibilidade de impugnação contenciosa de atos administrativos – nos casos previstos especialmente na lei – é uma das discussões doutrinárias mais acentuadas entre a doutrina portuguesa.

Na verdade, as querelas doutrinárias foram sendo recorrentes no que diz respeito à matéria dos RHN. Mesmo antes da reforma de 2002 já eram levantadas questões acerca da constitucionalidade deste instituto -  o confronto de toda a ideia dos RHN com o disposto no artigo 268º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), consagrado em 1976, fez com que as opiniões se dividissem. Doutrina e tribunais discordaram muitas vezes quanto à resposta a essa pergunta. Até hoje se pode afirmar que ainda não há harmonia doutrinária no que diz respeito à solução deste “problema”.

Antes da reforma de 2002, o RHN estava consagrado nos artigos 166º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo (CPA). O legislador do código então em vigor optou por condicionar o acesso aos tribunais administrativo, por parte dos particulares, ao preenchimento de três tipos diferentes de definitividade, – sendo esta definitividade, a “certeza” de que a entidade emissora do ato, em todos os níveis hierárquicos, tinha esgotado todas as possibilidades de solução do problema que levava o particular a impugnar o ato - : as definitividades material, horizontal e vertical. O âmbito vertical deste requisito obrigava a que o particular manifestasse a sua pretensão junto de todos os órgãos da mesma, até fazer chegar a sua pretensão ao superior máximo, uma vez que só depois da pronuncia deste acerca da mesma, é que o particular poderia optar por recorrer aos tribunais administrativos, para fazer valer o seu direito através de impugnação contenciosa. Esta característica foi apontada por alguns autores como sendo um limite à “suposta” tutela efetiva dos direitos dos administrados que se encontra consagrada na CRP.

No entanto, era essa mesma ideia de esgotamento de toda as alternativas possíveis antes de se poder recorrer ao contencioso que fez com que alguns autores se questionassem acerca da constitucionalidade da questão. A CRP de 1976 veio constitucionalizar o contencioso administrativo, procurando assegurar uma garantia do controlo jurisdicional da administração (ao abrigo do disposto nos artigos 206º e 212º, n.º3 da CRP) e a tutela dos interesses e direitos dos particulares que sejam legalmente protegidos através do acesso aos tribunais administrativos.

O Professor Vasco Pereira da Silva, defensor da inconstitucionalidade desta opção, já antes da reforma administrativa de 2002 defendia que o instituto do RHN violava princípios fundamentais como a tutela efetiva dos direitos dos particulares (artigo 268º, n.º 4 da CRP), o principio da separação da administração e da justiça, o principio da desconcentração administrativa (artigo 267º, n.º 2 da CRP) e, claro, o principio suprarreferido da efetividade da tutela. Já Marcelo Rebelo de Sousa considerava os recursos administrativos como mecanismos que permitiam o superior hierárquico exercer poderes de supervisão e intervenção sobre todos os subalternos, através da possibilidade da sua alteração mediante a vontade do próprio – o que aos olhos do Sr. Professor faria sentido, uma vez que o superior máximo de uma entidade da administração se encontra numa posição de especial responsabilidade e democraticidade.

Nessa altura, eram poucos os autores que apoiassem a ideia da inconstitucionalidade dos recursos administrativos. Os tribunais defendiam também a sua harmonia com os princípios do ordenamento.
Assim, só com a reforma de 2002, e com a alteração do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) que deixou de exigir o esgotamento de todos os recursos administrativos, quando os atos possam ser diretamente objeto de impugnação pela via contenciosa, como ficou pautado com o disposto no artigo 59º, n.º4 do CPTA (que se mantém igual mesmo após a reforma de 2015).

Mas a extinção da imperatividade dos recursos administrativos (até atingir a definitividade vertical), presente no artigo 51º, n.º1 CPTA – que determina a impugnabilidade de qualquer ato administrativo que possa violar direitos ou interesses doas pessoas e que produzam efeitos jurídicos externos – não foi bem recebida por parte da doutrina. Freitas do Amaral crítica a opção legislativa por defender que a mesma se pode concretizar numa “enchente” dos tribunais administrativos, derivada de pretensões de particulares que poderiam ser resolvidas com o recurso hierárquico. O professor afirma ainda que a liberdade de acesso aos tribunais administrativos a nível cautelar, aliado ao efeito suspensivo do ato administrativo que decorre desse mecanismo, pode resultar numa total paralisação da administração.

No entanto, ao contrário do que acontece hoje em dia, o CPA ainda previa que a primeira reação dos particulares contra atos que fossem contra os seus interesses ou direitos era a reclamação ou o recurso hierárquico. A reforma do CPTA trouxe alguma desarmonia entre os dois códigos, o que motivou novas querelas no âmbito do instituto dos recursos hierárquicos. Houve quem defendesse que o CPTA revogou as normas do CPA que previam a necessidade do recurso administrativo antes de se recorrer à via contenciosa. Já Mário Aroso de Almeida defendeu uma interpretação sistemática e atualista das normas do CPA, de modo a que delas se retira-se a ideia da possibilidade (e não obrigatoriedade) do legislador poder, em algumas normas de caráter especial, optar pela obrigatoriedade de recurso administrativo prévio, em determinados tipos de atos administrativos. Sempre fiel à ideia da inconstitucionalidade dos RHN, o Professor Vasco Pereira da Silva preferiu defender a caducidade das normas do CPA, por falta de circunstâncias que as justificassem.

A regra geral passou a ser, na verdade, a da “desnecessidade” de recorrer aos meios de recurso administrativo para que se possa recorrer aos meios contenciosos. Vasco Pereira da Silva defende que ficou permanentemente afastada a necessidade de RHN sendo sempre possível recorrer primariamente aos tribunais administrativos, sendo os recursos administrativos definidos como uma faculdade concedida ao particular, de acordo com os números 1, 3 e 4 do artigo 51º do CPTA. Por outro lado, Mário Aroso de Almeida defende que a necessidade continua a existir, como regra especial, desde a reforma de 2002: quando a lei expressamente o consagrar, pode o prazo para recurso administrativo condicionar o acesso aos tribunais, uma vez que nos casos em que os RHN sejam previstos por lei, a falta de recurso aos mesmos pode determinar o efeito de preclusão, impedindo que o particular se possa, depois, dirigir aos tribunais administrativos para fazer valer os seus direitos. Assim, o autor defende que nessas situações, o interesse processual do interessado se faz depender do esgotamento dos recursos administrativos, como acontecia antes da reforma de 2002.
Estes casos especiais fundamentar-se-iam principalmente na ideia de não fazer com que os tribunais administrativos ficassem sobrecarregados com processos que poderiam ser facilmente resolvidos em sede das entidades da administração.

Na verdade, penso que a razão estaria com o Professor Aroso de Almeida: não só não podemos considerar a necessidade de recurso hierárquico como sendo inconstitucional (uma vez que o RHN não impede os particulares de recorrerem aos tribunais administrativos, exigindo apenas o “preenchimento de pressupostos”, um ónus que se tem de verificar antes que seja possível fazê-lo), como considero que, mesmo antes da elaboração do novo CPA, a necessidade de recursos hierárquicos nos casos em que os mesmos estivessem previstos na lei é um meio de “defesa” da administração contra o uso descabido da via contenciosa para fazer valer pretensões que, muitas das vezes, podem não justificar tal mobilização. Nas palavras de Paulo Otero, depois da revisão do CPTA em 2002, passaram a ser os recursos necessários apenas “recomendáveis” – afastou-se com a reforma do processo administrativo a regra geral da necessidade da impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa. O interesse processual do particular não mais depende da definitividade vertical do ato administrativo que pretende impugnar.

Importa referir que no caso de se defender que todos os recursos hierárquicos passaram a ser meramente facultativos depois da penúltima reforma do CPTA, opera a suspensão do prazo de impugnação contenciosa do arigo 59º, n.º 4 CPTA, sendo que a regra não opera no caso de se considerar que existem casos nos quais o recurso administrativo é ainda necessário (em situações especiais), uma vez que nessas hipóteses não existe possibilidade de recorrer aos tribunais antes de se esgotar os recursos administrativos. Esta posição é a que encontra mais apoio na doutrina portuguesa.
A reforma de 2015 do CPTA não veio trazer alterações ao regime dos recursos administrativos, sendo que continua a operar a possibilidade de recurso aos tribunais sempre que o ato seja impugnável (não dependendo essa impugnabilidade de prévio esgotamento dos recursos administrativos, pelo particular que pretende impugnar o ato). A grande diferença desta reforma em relação à de 2002, é que parece agora o CPTA encontrar apoio no novo CPA. Este ultimo passa a ter previstos, nos artigos 184º e seguintes recursos necessários e facultativos, em consonância com o que está estipulado no CPTA desde a reforma de 2002 – nem um vestígio da obrigatoriedade ou necessidade de recorrer aos recursos hierárquicos para que se possa estar investido de interesse processual. A regra geral é, sem dúvida alguma, a da desnecessidade de esgotamento de mecanismos prévios para que se possa enveredar pelo caminho contencioso – os atos são impugnáveis com o simples preenchimento do artigo 51º, n.º 1 do CPTA.

Passam a ser os RHN situações especiais face à regra geral que opera tanto no CPTA como no CPA. Assim, de acordo com a posição do Professor Mário Aroso de Almeida, “na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os atos administrativos são imediatamente impugnáveis perante os tribunais, sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos que isso seja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considera justificada”.[i]

Concluindo, parece defensável que hoje em dia o recurso administrativo se apresenta como uma faculdade dada ao particular, que se pode definir como útil na luta contra a sobrelotação processual dos tribunais administrativos – nos casos em que a lei preveja uma exigência expressa do esgotamento dos mecanismos administrativos para o preenchimento do pressuposto “interesse processual” do particular, a possibilidade de recorrer a vias contenciosas parece depender desse preenchimento. Não defendo uma posição que considere inconstitucional a exigência desta tramitação em certas situações, uma vez que, como já ficou acima escrito, não determina a mesma um impedimento ao acesso aos tribunais, mas tão só um ónus que é dado ao particular que deve ser preenchido para que se possa verificar esse acesso.



Maria Beatriz Costa Monteiro
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[i] Ref. na pág. 355, em O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise.




BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2ª edição, 2016

AMARAL, Diogo Freitas do, Considerações Gerais Sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Trabalhos preparatórios in Reforma do Contencioso Administrativo

ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa, 10ª Edição, Almedina, 2015

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª edição, 2009

SILVA, Vasco Pereira da, De Necessário a Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo, in Julgar


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