sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Da Revelia no Contencioso Administrativo

DA REVELIA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

SUMÁRIO: I. Notas preparatórias; II. Revelia processual – “fisionomia” jurídica; III. Paralelismo legislativo entre o Processo Civil e o Contencioso Administrativo; IV. Considerações finais; V. Bibliografia.

              I.                        Notas Preparatórias

No contexto da revisão do direito processual administrativo[1], verificadas inúmeras (e de diversa ordem) alterações, variadas críticas terão sido suscitadas. De entre essas alterações, constituindo um elemento de matéria nuclear na revisão do direito processual administrativo, encontraremos uma mutação no regime estabelecido em torno da apresentação da contestação e nas consequências processuais da falta dela/de omissão de defesa, em especial no artigo 83.º, número 4, configurada tudo menos pacífica, tendo nesta, o presente artigo, incidência.
A fim de se puder compreender na totalidade as consequências das alterações aditadas à lei e observando-se a intrínseca e extrinsecamente ligação da figura da revelia do réu à figura processual da contestação, caberá aqui a aposição de notas introdutórias.
Processualmente, a contestação configurar-se-á como a peça escrita pela qual o réu, chamado a juízo para se defender, responde à petição apresentada pelo autor, podendo destrinçar-se dois sentidos desta noção. Uma acepção substantiva através da qual se entenderá a contestação como o acto pelo qual o demandado responde à pretensão formulada pelo requerente da acção. Já na sua acepção mais formal, a contestação revestirá uma dupla variante, em função do seu conteúdo, com relevante interesse para a definição do seu regime: contestação-defesa, limitando-se aqui o réu a repelir a pretensão do autor nos termos em que esta é deduzida[2]; contestação-reconvenção, envolvendo esta não uma defesa mas uma pretensão autónoma apresentada contra o autor, distinta do simples pedido de improcedência da acção do autor.
No tocante à forma, poder-se-á distinguir entre a contestação articulada, a contestação por negação e a contestação por mera junção de documentos[3].
Independentemente da qualificação tipológica da contestação, todos os meios de defesa que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio[4], ser deduzidos nesta, identificando a partir deste entendimento, um de dois princípios modeladores desta figura de tramitação processual: o princípio de concentração de defesa.
Extrapolando-se da necessidade de celeridade e economicidade processual e do artigo 573.º, número 1 do Código de Processo Civil, sacrificar-se-á o princípio clássico de liberdade de deduções (adoptado pelo Código de 1876) ao novo princípio de preclusão de deduções, verificando-se na esfera jurídica de actuação do réu o ónus de impugnação dos factos alegados pelo autor, a alegação dos factos que sirvam de base a qualquer excepção dilatória ou peremptória e ainda a dedução de excepções não previstas na norma excepcional do artigo 573.º, número 2 do Código de Processo Civil.
Quanto ao segundo princípio modelador da fase processual de defesa do réu (contestação) será este identificado juridicamente como o ónus de impugnação (especificada, nos termos do artigo 574.º do Código de Processo Civil) dos factos articulados na petição. Assim, o réu, ao elaborar a contestação, terá que tomar posição definida perante os factos narrados pelo autor como fundamento da sua pretensão. Não poderá simplesmente remeter-se a uma inércia processual, tendo sim que declarar se aceita os factos alegados como reais ou se os repele, identificando os mesmos como inexistentes. Esta é a atitude ético-jurídica categoricamente imposta pelo artigo 574.º, número 1 do diploma já mencionado, prescrevendo a tomada de posição pelo réu perante cada um dos factos articulados na petição, sob pena do efeito cominatório de confissão dos factos não contestados/impugnados se verificar plenamente.
Ainda quanto ao ónus de impugnação, no tocante à experiencia histórica, no Código de Processo Civil datado de 1876, excepcionados os processos cominatórios, as partes não teriam necessidade de tomar posição perante os factos alegados pela parte contrária, não estando por isso sujeitas a qualquer sanção. No entanto, com o desenrolar de um constante desenvolvimento substantivo e formal gradual[5], culminámos no artigo 574.º e na ratio subjacente ao mesmo.
Sendo as partes quem melhor conhece os factos que interessam à correcta decisão da causa e quem mais facilmente se pode esclarecer quanto aos factos que não sejam do conhecimento directo, o ónus de impugnação constitui assim o incentivo mais vigoroso para que estas coadjuvem a descoberta da verdade sobre a matéria de facto, sem a qual ficará, ainda que hipoteticamente, sem efeito a garantia da justa decisão da causa. Sem embargo, atenta a previsão do artigo 574.º, número 2 do Código de Processo Civil, verificar-se-ão desvios ao ónus de impugnação, ressalvando-se assim três situações em que apesar de não impugnados, os factos não são considerados como admitidos pelo réu:
a)      Quando os factos operem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, sendo para esse efeito bastante a impugnação quando o réu, embora não tenha tomado posição sobre cada um dos factos articulados pelo autor, apresentou uma narração que está em contradição com a que foi exposta na petição inicial;
b)      Quando não for admissível a confissão dos factos, ou seja, quando legalmente seja impossível a admissão de certos factos por acordo, mesmo que não impugnados (entre outros, artigo 354.º, alínea b) do Código Civil);
c)      Quando os factos só puderem ser provados por documento escrito, não se podendo considerar admitidos os factos para os quais a lei comine, por motivos de prova, a apresentação de documento escrito. (artigo 364.º, número 1 do Código Civil).

Ademais, caso este ónus de impugnação se configurasse como um ónus de impugnação especificada, não bastará ao réu (atendendo à lei, vide artigo 490.º, número 1 do anterior Código de Processo Civil) a impugnação factual genérica. Quer isto significar que a impugnação teria que ser feita facto por facto, pretendendo-se que o réu assuma a responsabilidade jurídica e moral da negação perante cada facto, por forma a que não possa posteriormente invocar a falta de contestação de certos factos tendo-o feito genericamente. Assim, não impugnando um facto, considerar-se-á este como admitido, produzindo-se quanto a ele um efeito cominatório idêntico àquele que, em caso de revelia, se produz quanto à generalidade dos factos alegados na petição inicial. Retira-se do exposto que não só a citação constituirá o réu no ónus de contestar como o constituirá ainda no ónus de impugnar especificamente cada facto alegado pelo autor[6].
Todavia, desde a revisão do Código de Processo Civil feita em 1995/1996, deixou a nossa lei de fazer menção ou sequer exigir processualmente que a impugnação seja feita especificadamente, configurando para todos os efeitos como bastante a simples referência aos números dos artigos da petição inicial. Entendimento este introduzido nas Linhas Orientadoras, sendo de encarar “a atenuação do excessivo rigor formal do ónus de impugnação especificada, sem que, todavia, tal implique que se dispense a parte de tomar posição clara, frontal e concludente sobre as alegações de facto feitas pela parte contrária”, tendo o legislador pugnado a maleabilização deste ónus com o intuito de que “a verdade processual reproduza a verdade material subjacente”. Consequentemente, admitir-se-á hoje, processualmente, a impugnação genérica visto a mesma não levar à desresponsabilização do réu nos casos em que este actue em violação de dever de boa-fé como legalmente preceituado, nos termos do artigo 542.º, número 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.
Em suma, deverá ser entendida a redacção actual como limitação do ónus de impugnação aos factos principais[7] em que se funda o pedido do autor.

II.                REVELIA PROCESSUAL - "FISIONOMIA" JURÍDICA”

Juridicamente, a revelia consiste na situação atípica do réu que, ao não observar o ónus[8] de contestar, não contesta, quer dentro do prazo peremptório que lhe é legalmente concedido, quer através de uma pura defesa ou de um pedido reconvencional, a acção contra ele intentada. Posto isto, duas situações importa distinguir[9]:
a)      A total inércia do réu, discernida pela inexistência de contestação, de qualquer tipo de oposição, de intervenção por qualquer forma no processo, bem como pela não constituição de mandatário[10];
b)      Diversamente, apesar de não haver contestação, pode o réu ter constituído mandatário em juízo, ter deduzido qualquer forma de oposição ou ter intervindo de qualquer forma no processo, ainda que entendida e considerada como não-contestação.
O réu revel, em qualquer dos casos supra exposto, não infringe um dever, tendo em conta que, por detrás da contestação, vigorará um mero ónus, cumprido ou não consoante a vontade deste. Isto apesar de as normas reguladoras da revelia, ainda que indirectamente, incitarem a colaboração das partes. Ademais, e apesar da voluntariedade deste comportamento, este tem sido entendido como lícito, não violando qualquer preceito legal, fruto de uma actuação processual norteada pelo princípio do dispositivo, e, por conseguinte, fruto de uma ideia de liberdade.
Sendo este ónus inobservado, não apresentando o réu qualquer defesa, e, por isto mesmo, constituindo-se este em situação de revelia, esta inobservância/inércia processual terá como consequência imediata e automática (por regra) que os factos alegados pelo autor se considerem provados por admissão[11]-[12] (artigo 567.º, número 1 do Código de Processo Civil). De tal modo, o réu silente torna-se confitente, dando-se como definitivamente adquirida no processo a prova admitida. Ficará assim o réu impedido de produzir provas no processo, concluindo-se que todos os factos narrados na petição se consideram provados, independentemente da sua maior ou menor favor ou desfavorabilidade.[13]
Ora, esta consequência imediata da revelia do réu, fundada na falta de contestação - reconhecimento da realidade de todos os factos articulados na petição - provoca a verificação de uma consequência mediata.
Operando o efeito cominatório da revelia, verificar-se-á a existência de um "salto processual", ou seja, a alteração da normal tramitação processual. Deste modo, atendendo aos artigos 566.º e 567.º, números 2 e 3, o processo será concluso ao juiz para verificação da regularidade da citação, da conformidade com os requisitos legais da petição inicial e da ocorrência de excepções dilatórias que possam dar lugar a sanação, procedendo-se em conformidade; serão pois notificados os mandatários judiciais das partes (autor e demandado) para, num espaço de 10 dias, alegarem por escrito, sendo seguidamente proferida sentença pelo juiz.
Neste caso, estaremos perante a designada revelia operante (caso não recaia em qualquer das hipóteses do artigo 568.º do Código de Processo Civil), gerando esta como observámos, dois efeitos: um efeito automático de confissão tácita ou presumida dos factos alegados pelo autor na petição inicial (artigo 567.º, número 1 do diploma previamente indicado) e um efeito mediato traduzido na alteração da tramitação processual (artigo 567.º, número 2).
Apesar de doutrinal e legalmente assente, este efeito de prova nem sempre se terá por verificado, dadas as excepções apontadas pelo artigo 568.º do Código de Processo Civil. Nestes casos, a revelia será designada de ineficaz/inoperante, ocorrendo:
                           i.            Quando, verificada a existência de múltiplos réus, a contestação de um aproveite aos restantes quanto aos factos que o contestante impugnar (alínea a)), verificando-se somente nas hipóteses de pluralidade de réus, independentemente da sua qualificação como litisconsórcio necessário, voluntário ou coligação e estando a sua eficácia limitada aos factos de interesse para o réu contestante e para o réu revel.
                         ii.            Quando o réu, ou alguns dos réus revéis, se configurem como incapazes atendendo ao âmbito do litígio. A revelia por estes levada a cabo será inoperante, não produzindo por isso qualquer cominação (alínea b)).
                       iii.            Tampouco se verificará o efeito cominatório quando o réu tiver sido citado editalmente e não tenha constituído mandatário nem intervindo de outro modo no processo, dentro do prazo destinado para a apresentação de contestação (alínea b)).
                       iv.            Quando a pretensão do autor seja respeitante a situações jurídicas ou interesses indisponíveis, isto é, que não se circunscrevam à esfera jurídica do réu, sendo que, neste caso, a omissão de contestar não produzirá qualquer efeito visto que tal lograria um resultado que, através de um qualquer negócio jurídico, seria inatingível (alínea c)).
                         v.            Ademais, quando a lei ou as partes exijam documento escrito como forma negocial, para a prova dum qualquer facto jurídico esse documento não será dispensável, pelo que, em algum momento poderá o silêncio da parte sobrepor-se ao mesmo.
                       vi.            Por último, apesar de clara referência, por aplicação analógica do artigo 574.º, número 2 do Código de Processo Civil, não podem ser dados como provados os factos física ou legalmente impossíveis e os que notoriamente se consagrem como inexistentes.

Determinadas pelo artigo 568.º do Código de Processo Civil, nestas hipóteses de revelia ineficaz ou inoperante não se reconduzirá o resultado à confissão ficta dos factos articulados pelo autor, devendo por isso indicar as provas que pretende fazer valer e produzir em juízo.

        III.          Paralelismo legislativo entre o Processo Civil e o Contencioso Administrativo

Após detalhada análise da tramitação processual da contestação e os seus efeitos nas esferas jurídicas das partes, caberá agora transpor esta realidade para o Contencioso Administrativo.
A reforma do direito processual administrativo, emergido após a introdução do novo Código de Processo Civil e um amplo debate doutrinário, assume nos seus aspectos normativos verdadeira especialidade em relação ao processo civil, constituindo um corpo normativo próprio, que ora se aproxima, ora se afasta do direito processual civil, atendendo às particularidades do direito administrativo.
Deste modo, tendo o legislador português há muito assumido a opção de natureza político-legislativa de aprovar um código de processo administrativo, vem através da sua reforma acentuar os traços da sua especificidade em relação ao processo civil, justificando a autonomia do mesmo.
Não será assim de olvidar a influência recíproca que ambos os direitos processuais exercem um sobre o outro, em termos que permitem afirmar que, não só o novo Código de Processo Civil acolhe certos aspectos de regime já antes previstos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como a reforma deste último, ao assumir expressamente certas soluções previstas naquele, opera uma remissão directa para este Código.
Para o presente artigo, questão essencial no âmbito do novo regime da acção administrativa prende-se com o regime estabelecido em torno da apresentação da contestação e com as consequências processuais dela advenientes.
Visto que sem olhar aos seus antecedentes e à evolução histórica dos preceitos em análise as palavras nada mais serão que pedaços de semântica, cumprirá com premência atentar ao registo histórico.
Apesar de consagrarem efectivamente a tramitação processual e, em especial, a figura da defesa do réu, tanto o Código Administrativo de 1896[14] (nos seus artigos 332.º e ss.) como o Código Administrativo de 1940[15] (na sua parte IV, isto é, artigos 796.º e ss.), esta será brevíssima, não levantando a hipótese de falta de contestação e muito menos apresentando solução para a mesma. Neste último, nos termos do artigo, salvo erro, 83.º somente se fará referência ao prazo para resposta da autoridade requerida, não tendo nestes diplomas conteúdo suficiente para que se possa interpretar o presente regime.
Diferentemente já será a análise do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aprovado pela Lei n.º 15/2002 de 22 de fevereiro, sendo que no presente diploma a relevância dada à figura da contestação foi sem precedentes.
Dispõe o artigo 83.º, com especial relevância para a temática aqui desenvolvida, mais especificamente, o seu n.º 4:

Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 84.º, a falta de contestação ou a falta nela de impugnação especificada não importa confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios.”[16]

Fixando um regime de ficta litis contestatio atípico[17], vigorou no contencioso administrativo uma normatividade na qual a falta de contestação ou a falta nesta de impugnação especificada não importaria a confissão dos factos articulados pelo autor, apreciando o tribunal livremente essa conduta para efeitos probatórios. Assim, encontramos neste preceito um regime distinto do regime previsto no Direito Processual Civil, e por isso distinto do regime de efeitos da revelia do réu, podendo aqui discutir-se se a não-cominação de consequências a nível de prova (ou mesmo a simples possibilidade de não-cominação) afastaria a classificação de ónus à contestação ou impugnação processual dos factos apontados pelo autor, visto que, nos casos inseridos neste preceito, a parte demandada não precisaria (necessariamente) de observar um determinado comportamento como meio de realização de um interesse próprio. Entendemos que sim visto que a simples possibilidade de a inobservância destes deveres não suscitar automática e imediamente a cominação de confissão de factos, não precisando possivelmente o réu de contestar para ver o seu interesse próprio realizado.
Presentemente, no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em concreto, no artigo 83.º, número 4, poder-se-á ler:

"Sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 84, a falta de impugnação especificada nas acções relativas a actos administrativos e normas não importa confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios."

Deste novo texto legal extrair-se-ão três ilações:
                                i.            A falta de impugnação especificada nas acções relativas a actos e normas não importa a confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta;
                              ii.            A falta de impugnação especificada (seguindo uma interpretação a contrario sensu) nas acções relativas a contratos e responsabilidade civil, importa a confissão dos factos articulados pelo autor;
                            iii.            A falta de contestação - por maioria de razão - importa a confissão dos factos alegados pelo autor.
Este último, dada a nova redacção e não resultando claramente da lei nem existindo total coerência entre o disposto nos artigos 82.º e 83.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, configurar-se-á como ambíguo, levantando-se a questão de saber quais as repercussões da inobservância do dever (ou ónus) de contestar. Efectivamente, com a revisão deste diploma, não se observa qualquer preceito ou normal legal que regulem a omissão de defesa do réu. Como se não fosse suficiente, tendo em atenção o artigo 82.º (relativo aos prazos para a contestação e cominação) a falta de previsão dos efeitos leva a que o desrespeito deste seja, simplesmente, inexistente. Assim, para interpretar este regime relativo ao ónus de contestar ter-se-á que confrontar a redacção primitiva e a que ora se dá ao n.º 4 do artigo 83.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, assim como atender ao ponto terceiro do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 02/10 o qual faz referência expressa ao "ónus de contestar".
Será de adoptar o entendimento[18] de que, apesar desta omissão, parece a intenção do legislador verdadeiramente instituir um sistema de ficta confessio[19], como já vimos supra, podendo esta mutação considerar-se como uma aproximação do Direito Processual Civil.
Efectivamente, tendo o legislador retirado do preceito a falta de contestação, esta actuação, supondo que o legislador actua sempre com um propósito, teria a intenção de efectivamente estabelecer um sistema no qual o réu disporá de um ónus de contestar, isto, é, terá que observar um determinado comportamento para atingir um objectivo ou pelo menos tentá-lo, consagrando-se assim pela primeira vez este ónus nos processos administrativos, independentemente das pretensões nele deduzidas, sob pena de se produzirem os efeitos da revelia. Ademais, só este entendimento se compatibilizará com o estabelecimento de que havendo contestação, a falta nesta do dever de impugnação especificada, não sendo processualmente inócua, não operará efeitos para matéria de prova. Como aponta ELIZABETH FERNANDEZ[20], se a intenção vertida no Anteprojecto fosse a de manter o sistema de ficta litis contestatio, qualquer sentido lógico faria a regulação isolada da falta de impugnação especificada, a qual pressupõe que tenha sido apresentada uma contestação pelo demandado, pois se o mais (falta de contestação) não produz efeitos confessórios, o menos também não o deverá produzir (contestação sem impugnação especificada).
Ainda, e apesar das especificidades que o contencioso administrativo apresenta perante o direito processual civil, parecem aqui as diferentes tramitações ser orientadas pelas mesmas matrizes e princípios, sendo de difícil argumentação a implantação de um sistema que afrontaria a celeridade e economicidade processual, que não pugnaria pelo estímulo de contestar, bem como contrastante com a jurisprudência até aqui maioritária e convergente.
Trilhando o nosso caminho entendendo pela solução acima exposta, caberá definir um regime jurídico estável e substantivo no âmbito do qual recaiam os casos de revelia.
Manifestando o regime traçado a existência da figura processual da revelia no contencioso administrativo, teremos aqui que nos socorrer ao direito processual civil (artigos 566.º e ss. do Código de Processo Civil) por forma a adoptar soluções harmonizáveis com o direito processual português, sendo de salientar a de maior relevância: não obstante a cominação processual para a falta de contestação ser a revelia, traduzida na confissão dos factos articulados pelo autor, que poderá ou não conduzir à condenação da entidade demandada no pedido, assim como conduzir à sua absolvição da instância ou do pedido, consoante o caso, por forma a identificarmos correctamente se a revelia, no caso em concreto será operacional/operante, teremos que recorrer ao artigo 568.º do Código de Processo Civil. Fixa este as variadas excepções aos normais efeitos da revelia previstos no artigo anterior. Coadjuvante ainda, importará referir a aplicabilidade do artigo 453.º do diploma referido, relativo ao regime da prova por confissão e declarações das partes, atendendo às soluções por este fixadas.
Cumprirá ainda atender à solução do artigo em análise quanto à impugnação especificada. Dispõe o artigo 83.4 que, o réu, ao contestar, deverá tomar posição definida perante os factos articulados pelo autor, afastando-se assim da solução do artigo 574.º do Código de Processo Civil, dispondo este por sua vez, que o réu deverá ao contestar, tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. Não confinando os actos necessariamente contestados, e perante a redacção do artigo[21], poder-se-á entender este dever de impugnação como tendo uma amplitude maior e diferente da do Processo Civil. Ainda, outra questão que se colocará será a natureza jurídica contrastante nos dois direitos desta figura da impugnação especificada. No contencioso administrativo, configurando-se a cominação pela falta de impugnação como menos intensa da qual resulta do direito processual civil, levantar-se-á a questão de saber se ainda assim, se configuraria como ónus. Pessoalmente não a configuro, sendo que, efectivamente, não haverá necessidade do réu em impugnar todos os factos alegados para que se consiga a efectiva improcedência da acção contra ele deduzida, isto porque, o tribunal terá total liberdade para apreciação dessa conduta para efeitos probatórios. De fácil contra-argumentação, certos autores apontam para uma atipicidade da figura ou uma atipicidade de consequências da sua não observância. Isto não procederá. Não se poderá certamente defender a atipicidade de uma figura jurídica quando a mutação in casu se configurar como substancialmente nuclear. Estaríamos a perpetuar uma solução que, a ser aplicável in loco, geraria uma tipicidade e taxatividade de figuras na ordem jurídica existente.

                   IV.            Considerações finais

Historicamente inexplorada e legalmente (quase) inobservada, no Contencioso Administrativo, a defesa e os efeitos da omissão da mesma, afigurando-se como das matérias nucleares da teoria do processo, observamos aqui uma total desconsideração, não fazendo jus à sua importância na tramitação processual. Como verificámos, será de valor interpretar as previsões legais desta figura conjuntamente com as do Direito Processual Civil, configurando-se como similares os princípios e orientações jurídicas destas disciplinas legais, podendo concluir-se que, na tramitação processual administrativa, a revelia do réu será objecto de cominações jurídicas, dependendo estas de se a revelia incidir sobre a contestação ou sobre a falta de impugnação especificada na mesma.
Constituindo as revisões e reformas legislativas um inegável avanço na tutela jurisdicional efectiva dos cidadãos, terão estas, em matéria de Contencioso Administrativo que relevar a figura da contestação e as suas consequências, tendo em conta as lacunas das quais padece esta fase processual.

                      V.            Bibliografia

- Ana Celeste Carvalho, O Regime Processual da Nova Acção Administrativa: aproximações e distanciamentos ao Código de Processo Civil, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 113, 2015.
- José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum - À Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013.
- João de Matos Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 2004.
- Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª edição, Almedina editora, 2017.
- Carla Amado Gomes e outros, O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate, AAFDL editora, 2014.
- Carla Amado Gomes e outros, Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 3ª edição, AAFDL editora, 2017.
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3ª edição, Almedina editora, 2017.




[1] Decorridos doze anos de vigência do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, verificadas situações carecedoras de clarificação regimental, disposições que já não se ajustavam às opções dominantes assumidas pela doutrina e pela jurisprudência administrativas, e, surgindo por forma a responder ao disposto no artigo 4.º, da Lei n.º 15/2002, de 22/02, à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (01/09 de 2013), e ainda à aprovação de um novo Código de Procedimento Administrativo, terá sido introduzido na ordem jurídica portuguesa o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, tendo por objecto a revisão de diplomas reguladores de múltiplas áreas de Direito Administrativo como o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código dos Contratos Públicos, entre outros. Desde então entendida como a revisão mais intensa e profunda no Direito e Contencioso Administrativo.
[2] Dentro da figura da contestação-defesa, está será ainda subdividida em duas categorias: a defesa por impugnação e a defesa por excepção (artigo 571.º do Código de Processo Civil), residindo a tónica distintiva na oposição do réu.
[3] Na contestação articulada – a única que a lei expressamente admite – o réu alega em termos discriminados as razões de facto e de direito que servem de fundamento à sua defesa ou à sua reconvenção. Na contestação por negação – que a lei expressamente repudia – o réu nega em bloco, indiscriminadamente, a matéria de facto constante da petição. Por sua vez, a contestação por simples junção de documentos assenta no puro oferecimento real da prova documental, desacompanhada de qualquer alegacão escrita sobre os próprios factos a que o documento se refere (apesar de não mencionada pela lei, caberá no entender de ANTUNES VARELA como forma válida de contestação, podendo bem constituir um meio concludente de contrariar um facto articulado pelo autor).
[4] Em princípio visto que a própria lei abre a possibilidade de verificação de excepções. Assim, à regra fixada para os meios de defesa em geral estabelece a lei excepções num tríplice sentido: a existência de meios de defesa supervenientes, abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objectiva), quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação, mas só de conhecimento posterior pelo réu (superveniência subjectiva), recaindo a dedução e alegação destes factos para articulado superveniente; o reconhecimento legal de meios de defesa expressamente admitidos para momento póstumo à contestação; e ainda, a possibilidade de certos meios de defesa serem reconhecidos pelo tribunal oficiosamente, abrangendo a impugnação de direito e a grande maioria de excepções dilatórias e peremptórias, sem prejuízo de os factos em que as excepções se baseiem só poderem ser introduzidos no processo pelas partes. Em especial, artigo 573.º, número 2 do Código de Processo Civil.
[5] Gradual dado que, primordialmente, com o decreto de 29 de maio de 1907, estabeleceu-se a aplicabilidade/necessidade de observância deste ónus, ainda que limitada esta aos processos sumários, sendo que, só vinte anos depois outra disposição legal a este se referenciaria (decreto n.º 13 979, de 25 de julho de 1927) estendendo esta o já mencionado ónus ao processo ordinário, sob a cominação de se terem como admitidos por acordo os factos não especialmente impugnados pela parte contrária. Esta terá transitado seguidamente para o decreto n.º 21 287, de 26 de maio de 1932, o qual terá constituído fonte imediata do artigo 494.º do Código de 1939 e a fonte mediata do artigo actualmente regulador do ónus de impugnação.
[6] Característica típica dos sistemas de ficta confessio, podendo referir-se a título de exemplo o ordenamento jurídico alemão, no qual se fundamenta esta cominação pela violação de um dever geral de verdade, intimamente conexionado com o dever de declarar.
[7] “Essenciais” na terminologia do artigo 552.º, número 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
[8] Entre nós estabelecido como a necessidade de observar um determinado comportamento como meio de realização de um interesse próprio.
[9] ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit., III, p.1, num entendimento clássico, pugnava pela inexistência de duas modalidades de revelia, mas sim uma só, ainda que sujeita à possibilidade de agravamento no caso de não comparência do demandado em tribunal.
[10] Usando a terminologia de ALBERTO DOS REIS, dir-se-á que neste caso o réu "nem contesta, nem comparece".
[11] E não como configurado pelo preceito citado por confissão ("consideram-se confessados"), criticando LEBRE DE FREITAS este, dado o regime da admissão distinguir-se em vários pontos do da confissão, constituindo mesmo uma figura autónoma desta. Tradicionalmente fala-se de ficta confessio para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade dum facto alegado pela parte contrária, seja mediante a pura omissão de contestar, seja mediante a não impugnação desse facto, em contestação ou outro articulado apresentado. Efeito esse que, gerando a confissão táctica dos factos, deverá ser interpretado de acordo com o Acórdão do Tribunal de Relação do Porto de 06/10/2009, no sentido em que a revelia não determinará a aplicação ao réu de qualquer sanção mas somente certas desvantagens quanto à decisão da acção.
[12] Contrastantes se apresentam os sistemas jurídicos que assentam no sistema da ficta litis contestatio, consagrado em Itália, Espanha e França. Este consagrará o entendimento de que o silêncio do demandado deve ser interpretado como oposição (contestação tácita), originando portanto, uma resistência implícita do réu à pretensão do autor. A despeito de uma maior protecção/preocupação com a verdade e de uma possível maior protecção do contraditório, o sistema da ficta confessio terá como vantagens, entre outras, o estímulo/incentivo do citado a contestar, a celeridade processual (ao funcionar como acelerador processual), bem como, a maior correspondência com a realidade (no fundo, a falta de contestação corresponde à simples confirmação dos factos alegados pelo autor). Nesta orientação argumentativa, o Acórdão da Relação de Guimarães de 12/06/2008 (Antero Veiga), apologista do sistema adoptado pelo Processo Civil português, entende que "A justificação de tal regime prende-se com as razões que subjazem à revelia operante. Esta assenta na inactividade do réu (…) considerada uma contestação táctica de aceitação dos termos da demanda na sua dimensão fáctica. A operância resulta ainda de um acto dispositivo da parte consistente na omissão voluntaria do direito à defesa, relevado por forca da cominação e em violação ou inobservância do ónus de contestar", vide www.dgsi.pt/. Note-se ainda que, como adverte LEBRE DE FREITAS, o sistema vigente entre nós somente violaria garantias constitucionais e processuais de defesa se negasse ao réu a possibilidade de intervir ulteriormente a fim de se defender.
[13] A propósito da confissão tácita dos factos resultante da revelia, quanto à questão de qual o regime de confissão aplicável, vide ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985.
[14] Aprovado por Carta de Lei de 4 de maio de 1896.
[15] Aprovado pelo Governo, neste caso, pelo Decreto-Lei.º 31095 de 31 de dezembro de 1940.
[16] Note-se a primeira parte deste preceito. "Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 84.º (…)". Comina este último que a falta de envio do processo administrativo (entendido como ónus, visto este envio configurar-se pura e simplesmente como um dever de colaboração, atentas as suas consequências) não determinará um efeito cominatório automático, visto que a sua inobservância não gera desde logo que os factos alegados pelo autor se considerem provados. Assim, só se observará a eficácia plena deste efeito cominatório se essa omissão tiver acarretado a impossibilidade ou considerável dificuldade da prova pelo autor.
[17] Atípico dado que, apesar de a inobservância dos ónus de contestar e de impugnar não gerar a confissão/admissão dos factos alegados, também não gerará, hipoteticamente, uma resistência implícita como verificado em ordenamentos externos como o ordenamento italiano, francês e espanhol.
[18] Num entendimento diverso, poder-se-á interpretar a retirada do ónus de contestação do artigo como uma omissão irrelevante, ou seja, tendo o legislador consignado mas sem relevância jurídica, somente linguística. Como explicaremos, este entendimento não apresentará qualquer sentido, não devendo por isso ser defendido.
[19] A introdução legislativa deste sistema implicará a revogação do sistema previamente adoptado "ficta litis contestatio".
[20] Esta autora julga ainda impor-se a clarificação de modo inequívoco pelo preceito das consequências efectivas da revelia do réu no contencioso administrativo resultantes das modificações introduzidas.
[21] Aqui, poderíamos seguir uma de duas orientações, ou propugnando o entendimento de que tendo o contencioso administrativo uma norma especial orientadora da amplitude da impugnação, nenhum sentido faria aplicar-se a solução processual civil, ou entendendo que, não sendo esta solução aquela que melhor se coaduna com o direito processual civil e com o ónus de alegação imposto no artigo 78.º, número 2 do Anteprojecto, deverão relevar contenciosamente, estes dois últimos preceitos

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