Procurar-se-á
com este pequeno comentário reflectir sobre a figura da culpa do lesado no
processo administrativo, nomeadamente, através da análise do art. 38º CPTA e do
4º RRCEEEP. O tema em si, perdoe-se a coloquialidade da expressão, dá pano para
mangas de desenvoltura, mas, sob pena de se discorrer extensivamente pela
temática, o objectivo passará pela concretude e pela via de uma exposição
sucinta.
1.
Enquadramento das
acções de responsabilidade extra-contratual:
A
temática de sindicância da responsabilidade extra-contratual em matéria de
responsabilidade pública fora controversa: É o acórdão Blanco que dá o pontapé de saída
para a autonomização da responsabilidade administrativa do Direito
Administrativo face ao Direito Privado[1], considerando-se
que em matéria de responsabilidade do Estado, a jurisdição administrativa teria
regras próprias que só ela seria competente para julgar.
No nosso estado actual, tudo se tornou ainda
mais claro, pois o 212º da CRP consagra a ideia de que a apreciação a titulo
principal de actos de soberania jurídico-públicos deve ser sempre reservada aos
tribunais administrativos, sob pena de violação do seu número 3. Mais, não só a
titulo principal, como também, em virtude do 4º/1º/ f, g e h do ETAF, é
reconhecida a competência para julgar todos os litígios emergentes da aplicação
das regras do RRCEEEP. A fórmula,
contudo, não é a mais feliz, desde logo, por ser tautológica[2], procurando
a clarificação optou-se por técnicas descritivas, um pouco estranhas à
dogmática geral do nosso Direito. Importa ainda referir que os particulares gozam
desta tutela por consagração constitucional, tal como aponta o art. 22º da Lei
Fundamental.
2.
A saga de Júlio:
O tu
quoque (também tu) tem como matriz histórica a expressão de Júlio César
aquando do seu assassinato no Senado de Roma, quando se apercebeu que o seu
filho adotivo, Bruto, se encontrava entre os conjurados[3]. A
fórmula do tu quoque exprime a regra geral
pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois sem abuso[4]:
a) Ou prevalecer-se da situação daí decorrente
b) Ou exercer a posição violada pelo próprio
c) Ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada
Existem ainda assim, mais explicações para o
tu quoque, tais como a ideia de
retaliação; compensação de culpas; comportamentos contraditórios, etc.[5]
A reter deve ficar a seguinte ideia: no caso
de culpa do lesado, o fundamento é o de que o prejudicado não pode ser
ressarcido por estar implicado numa prática desvalorizada. Denote-se que o
problema não é tanto de culpa, mas sim de causalidade[6]. A
ordem jurídica postula certos valores materiais cuja prossecução pretende ver
assegurados: havendo culpa do lesado nos termos do art. 570º CC, a realidade subjacente
não poderá ser comparada ao ilícito comum, daí que a indemnização possa ser
minorada ou suprimida. No nosso caso, sem prejuízo de um maior desenvolvimento
mais à frente, a não impugnação do acto administrativo no tempo devido, consolidando-se
na ordem jurídica, teria como consequência o da minoração da respectiva
indemnização.
3. Breve nota histórica:
O art. 4º do RRCEEEP tem como antecedente
histórico o art. 7º do D-lei 48051, de 21 de Novembro de 1967. Dispunha o
artigo que “o dever de indemnizar , por parte do Estado e demais pessoas
colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não
depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos actos
causadores do dano; mas o direito destes à reparação só subsistirá na medida em
que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de recurso ou a
negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto”. O preceito
em causa suscitou divergências interpretativas na doutrina, excursando pelas
posições rapidamente: a) a tese processualista, encabeçada por MARCELLO CAETANO[7],
onde se defendia que a prévia impugnação do acto constituía um pressuposto
processual para a admissibilidade da acção por indemnização; b) a tese
substancialista, que teve como paladino, RUI MEDEIROS, defendia que a falta de
impugnação relevaria apenas em sede de culpa do lesado[8]. A
posição prevalecente acabou por ser a substancialista, tal é confirmado pelo ac.
do STA de 30 de Outubro de 1995 onde se diz que “ a acção de indemnização para
ressarcimento dos prejuízos não depende ou exige a instauração e procedência de
recurso contencioso contra o acto lesivo”.
4. A figura da culpa do lesado.
Diz-nos o artigo em questão que – “o
tribunal pode conhecer , a titulo incidental, da ilegalidade de um acto
administrativo que já não possa ser impugnado” (nº1); não obstante, “não pode
ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do
acto inimpugnável” (nº2).
Perante isto, cumpre desde logo assinalar
que estamos perante uma acção que é autónoma. Isto é, a acção de
responsabilização, passe-se o pleonasmo, será autónoma face à acção de
impugnação. Depois, apesar dessa autonomia, a falta de impugnação do acto
lesivo, não pode deixar de ter consequências ao nível da tutela final concedida
ao interessado, impedindo-o de obter, numa outra acção, desde logo com fins indemnizatórios,
os efeitos que obteria em caso de anulação do acto lesivo[9].
Face ao exposto, uma das situações em que
ocorre o acima descrito, é a do art. 4º do RRCEEEP. Onde se levantam algumas
questões de enorme importância a nível processual e de tutela das posições dos
lesados.
Um dos grandes problemas que esta figura
levanta é o de saber se põe em causa o princípio da plenitude da garantia
jurisdicional administrativa, dado que, aparentemente, o lesado não tem livre
escolha do meio processual em causa. Como já vimos, quem não impugne
atempadamente o acto poderá ver a sua indemnização excluída ou diminuída. Se o
sistema tem caminhado para o subjectivismo, por que razão se acaba por a sua
liberdade? Sintetizando: “ Se o lesado livremente escolheu não recorrer a um
meio impugnatório(…) mas é confrontado com a figura da culpa do lesado quando
peticiona uma indemnização pelos danos sofridos, parece forçoso concluir que
tal escolha afinal não é inteiramente livre”[10].
Na versão anterior do RRCEEP, houve quem
sustentasse que o preceituado no art. 7º seria inconstitucional por restringir arbitrariamente
o direito de indemnização consagrado no art. 22º da CRP[11],
pois o facto do lesado só deve ter relevância se for reprovável. Felizmente, na
nova redacção, o legislador minimizou os riscos desta interpretação, mas ainda
assim cabe fazer a seguinte nota de reparo: O art. 38º/2 do CPTA e o 4º do
RRCEEEP só se aplicam quando haja uma identidade de efeitos, isto é, quando os efeitos
que o autor visa obter com a acção de responsabilidade são os mesmos que
tipicamente se produziriam em caso de procedência do pedido de invalidação do
acto – sendo as pretensões distintas, não há que coarctar os poderes de
cognição e decisão do tribunal[12],
sob pena de inconstitucionalidade por limitação dos danos indemnizáveis de modo
arbitrário.
Há ainda uma questão de fundo que cumpre mencionar:
face ao que até agora foi dito, existirá um dever jurídico do lesado?
Parece-nos que sim: o princípio da boa-fé, enquanto regra de conduta, contém um
padrão objectivo de comportamento, exigindo ao lesado que se abstenha de
contribuir para o agravamento das consequências do facto do responsável.
Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise;
Autores vários, Regime da responsabilidade extra-contratual do e Estado, comentários à luz da jurisprudência;
Menezes Cordeiro, Tratado V;
Menezes Cordeiro, Litigância de má-fé, abuso do Direito de acção e culpa in agendo;
Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentários ao CPTA;
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado
[1]
Francisco Paes Marques, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado,
comentários à luz da jurisprudência, pág. 95.
[2] Ob.cit, o
autor acaba por propor como ideia norteadora, a de que o legislador se bastaria
pela afirmação de que o regime seria aplicável caso se agisse ao abrigo de
disposições de Direito Administrativo, simplificando assim as alíneas do ETAF.
[3] Menezes
Cordeiro, Litigância de má fé… pág 116., nota de rodapé 327.
[4] Menezes
Cordeiro, Tratado V, pág. 359.
[5] Para
mais desenvolvimentos: Ob.cit, pág 362 e ss.
[6] Ob.cit,
pág, 364.
[7] Marcello
Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, pág 1220.
[8] Para
maiores desenvolvimentos: … Marco Caldeira, pág. 299 e ss.
[9] Marco
Caldeira, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado, comentários à luz da jurisprudência pág. 308º
[10] Ob.cit,
pág 340
[11] Posição
sufragada por Rui Medeiros, ob.cit., pág 302.
[12]
Ob.cit., pág 341.
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