sábado, 16 de dezembro de 2017

Da figura da culpa do lesado no processo administrativo



   Procurar-se-á com este pequeno comentário reflectir sobre a figura da culpa do lesado no processo administrativo, nomeadamente, através da análise do art. 38º CPTA e do 4º RRCEEEP. O tema em si, perdoe-se a coloquialidade da expressão, dá pano para mangas de desenvoltura, mas, sob pena de se discorrer extensivamente pela temática, o objectivo passará pela concretude e pela via de uma exposição sucinta.



1.      Enquadramento das acções de responsabilidade extra-contratual:

     A temática de sindicância da responsabilidade extra-contratual em matéria de responsabilidade pública fora controversa:  É o acórdão Blanco que dá o pontapé de saída para a autonomização da responsabilidade administrativa do Direito Administrativo face ao Direito Privado[1], considerando-se que em matéria de responsabilidade do Estado, a jurisdição administrativa teria regras próprias que só ela seria competente para julgar.
   No nosso estado actual, tudo se tornou ainda mais claro, pois o 212º da CRP consagra a ideia de que a apreciação a titulo principal de actos de soberania jurídico-públicos deve ser sempre reservada aos tribunais administrativos, sob pena de violação do seu número 3. Mais, não só a titulo principal, como também, em virtude do 4º/1º/ f, g e h do ETAF, é reconhecida a competência para julgar todos os litígios emergentes da aplicação das regras do RRCEEEP.  A fórmula, contudo, não é a mais feliz, desde logo, por ser tautológica[2], procurando a clarificação optou-se por técnicas descritivas, um pouco estranhas à dogmática geral do nosso Direito. Importa ainda referir que os particulares gozam desta tutela por consagração constitucional, tal como aponta o art. 22º da Lei Fundamental.


2.      A saga de Júlio:
  O tu quoque (também tu) tem como matriz histórica a expressão de Júlio César aquando do seu assassinato no Senado de Roma, quando se apercebeu que o seu filho adotivo, Bruto, se encontrava entre os conjurados[3]. A fórmula do tu quoque exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois sem abuso[4]:
a)     Ou prevalecer-se da situação daí decorrente
b)     Ou exercer a posição violada pelo próprio
c)     Ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada

   Existem ainda assim, mais explicações para o tu quoque, tais como a ideia de retaliação; compensação de culpas; comportamentos contraditórios, etc.[5]
  A reter deve ficar a seguinte ideia: no caso de culpa do lesado, o fundamento é o de que o prejudicado não pode ser ressarcido por estar implicado numa prática desvalorizada. Denote-se que o problema não é tanto de culpa, mas sim de causalidade[6]. A ordem jurídica postula certos valores materiais cuja prossecução pretende ver assegurados: havendo culpa do lesado nos termos do art. 570º CC, a realidade subjacente não poderá ser comparada ao ilícito comum, daí que a indemnização possa ser minorada ou suprimida. No nosso caso, sem prejuízo de um maior desenvolvimento mais à frente, a não impugnação do acto administrativo no tempo devido, consolidando-se na ordem jurídica, teria como consequência o da minoração da respectiva indemnização.


3.      Breve nota histórica:

   O art. 4º do RRCEEEP tem como antecedente histórico o art. 7º do D-lei 48051, de 21 de Novembro de 1967. Dispunha o artigo que “o dever de indemnizar , por parte do Estado e demais pessoas colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos actos causadores do dano; mas o direito destes à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto”. O preceito em causa suscitou divergências interpretativas na doutrina, excursando pelas posições rapidamente: a) a tese processualista, encabeçada por MARCELLO CAETANO[7], onde se defendia que a prévia impugnação do acto constituía um pressuposto processual para a admissibilidade da acção por indemnização; b) a tese substancialista, que teve como paladino, RUI MEDEIROS, defendia que a falta de impugnação relevaria apenas em sede de culpa do lesado[8]. A posição prevalecente acabou por ser a substancialista, tal é confirmado pelo ac. do STA de 30 de Outubro de 1995 onde se diz que “ a acção de indemnização para ressarcimento dos prejuízos não depende ou exige a instauração e procedência de recurso contencioso contra o acto lesivo”.

4.      A figura da culpa do lesado. 
          Diz-nos o artigo em questão que – “o tribunal pode conhecer , a titulo incidental, da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado” (nº1); não obstante, “não pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do acto inimpugnável” (nº2).
   Perante isto, cumpre desde logo assinalar que estamos perante uma acção que é autónoma. Isto é, a acção de responsabilização, passe-se o pleonasmo, será autónoma face à acção de impugnação. Depois, apesar dessa autonomia, a falta de impugnação do acto lesivo, não pode deixar de ter consequências ao nível da tutela final concedida ao interessado, impedindo-o de obter, numa outra acção, desde logo com fins indemnizatórios, os efeitos que obteria em caso de anulação do acto lesivo[9].
   Face ao exposto, uma das situações em que ocorre o acima descrito, é a do art. 4º do RRCEEEP. Onde se levantam algumas questões de enorme importância a nível processual e de tutela das posições dos lesados.
   Um dos grandes problemas que esta figura levanta é o de saber se põe em causa o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, dado que, aparentemente, o lesado não tem livre escolha do meio processual em causa. Como já vimos, quem não impugne atempadamente o acto poderá ver a sua indemnização excluída ou diminuída. Se o sistema tem caminhado para o subjectivismo, por que razão se acaba por a sua liberdade? Sintetizando: “ Se o lesado livremente escolheu não recorrer a um meio impugnatório(…) mas é confrontado com a figura da culpa do lesado quando peticiona uma indemnização pelos danos sofridos, parece forçoso concluir que tal escolha afinal não é inteiramente livre”[10].
   Na versão anterior do RRCEEP, houve quem sustentasse que o preceituado no art. 7º seria inconstitucional por restringir arbitrariamente o direito de indemnização consagrado no art. 22º da CRP[11], pois o facto do lesado só deve ter relevância se for reprovável. Felizmente, na nova redacção, o legislador minimizou os riscos desta interpretação, mas ainda assim cabe fazer a seguinte nota de reparo: O art. 38º/2 do CPTA e o 4º do RRCEEEP só se aplicam quando haja uma identidade de efeitos, isto é, quando os efeitos que o autor visa obter com a acção de responsabilidade são os mesmos que tipicamente se produziriam em caso de procedência do pedido de invalidação do acto – sendo as pretensões distintas, não há que coarctar os poderes de cognição e decisão do tribunal[12], sob pena de inconstitucionalidade por limitação dos danos indemnizáveis de modo arbitrário.
  Há ainda uma questão de fundo que cumpre mencionar: face ao que até agora foi dito, existirá um dever jurídico do lesado? Parece-nos que sim: o princípio da boa-fé, enquanto regra de conduta, contém um padrão objectivo de comportamento, exigindo ao lesado que se abstenha de contribuir para o agravamento das consequências do facto do responsável.
  



 Bibliografia: 
Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise; 
Autores vários, Regime da responsabilidade extra-contratual do e Estado, comentários à luz da jurisprudência; 
Menezes Cordeiro, Tratado V; 
Menezes Cordeiro, Litigância de má-fé, abuso do Direito de acção e culpa in agendo; 
Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentários ao CPTA; 
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado




[1] Francisco Paes Marques, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado, comentários à luz da jurisprudência, pág. 95.
[2] Ob.cit, o autor acaba por propor como ideia norteadora, a de que o legislador se bastaria pela afirmação de que o regime seria aplicável caso se agisse ao abrigo de disposições de Direito Administrativo, simplificando assim as alíneas do ETAF.
[3] Menezes Cordeiro, Litigância de má fé… pág 116., nota de rodapé 327.
[4] Menezes Cordeiro, Tratado V, pág. 359.
[5] Para mais desenvolvimentos: Ob.cit, pág 362 e ss.
[6] Ob.cit, pág, 364.
[7] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, pág 1220.
[8] Para maiores desenvolvimentos: … Marco Caldeira, pág. 299 e ss.
[9] Marco Caldeira, Regime da responsabilidade extra-contratual do Estado, comentários à luz da jurisprudência pág. 308º
[10] Ob.cit, pág 340
[11] Posição sufragada por Rui Medeiros, ob.cit., pág 302.
[12] Ob.cit., pág 341. 

Sem comentários:

Enviar um comentário