segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Processos em massa e as alterações de 2015


Os processos em massa são uma figura que emergiu inspirada no direito espanhol (artigo 37 nº 2 e 111º da lei da jurisdição contenciosa – administrativa de 1998), surgiu no nosso direito pela primeira vez no código de processo dos tribunais administrativos aprovado pela lei nº 15/ 2002 de 22 de fevereiro.
            A intenção com a introdução deste regime foi a redução do número de litígios a apreciar pelos tribunais e também facilitar a existência de uma uniformidade das decisões que são proferidas pelos tribunais administrativos em questões idênticas.
            Este regime de processos em massa pode ter uma grande importância no direito administrativo, primeiro devido à crescente complexidade da atividade administrativa, posteriormente devido ao facto de existir um grande número de relações que a administração constrói com os particulares. O professor Vasco Pereira realça isso ao nos dizer que as escolhas da administração envolvem muitas pessoas e consequentemente muitos interesses. Podemos comprovar isso quando estão em causa decisões de processos de construção de pontes, autoestradas e tantos outros empreendimentos, ou mesmo decisões sobre, por exemplo, o ambiente. Estas podem lesar muitos interesses de particulares, por isso, este regime de processos em massa dá uma resposta previsivelmente igual a todos os casos e com muito mais rapidez.  Podemos também ver a criação deste regime como uma forma de cumprir a imposição do artigo 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, que exige uma decisão em tempo razoável, sem perder de vista a garantia de segurança da jurídica, decorrente do nº 5 do mesmo artigo.
            O regime dos processos em massa está consagrado no artigo 48º no código de processo dos tribunais administrativos (doravante CPTA), com a epigrafe “Seleção de processos com andamento prioritário”, passarei agora a enunciar os seus requisitos:
·         Sejam intentados mais de 10 processos, antes da revisão de 2015 eram exigidos mais de 20 processos, que era uma influência alemã, depois de 2015 acabou-se assim com a discussão se se podia utilizar este regime quando não tinham sido intentados 21 processos, mas já existia um número significativamente elevado destes.
·         Processos reportados a diferentes pronúncias da mesma entidade administrativa, ou seja, da mesma pessoa coletiva (ou do mesmo ministério, no caso do Estado), não sendo necessário que todas provenham do mesmo órgão, mas sim da mesma pessoa coletiva.
·          Decisões respeitantes à mesma relação material ou decisões respeitantes a diferentes relações materiais suscetíveis de ser decididas com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações, como se vê existem dois pressupostos para aplicar este regime o que aumenta o grau de aplicação do regime.
- Quanto à mesma relação material deve entender-se uma ordenação de dois ou mais sujeitos jurídicos com relação a outros através da atribuição de poderes e deveres, isto é, de posições jurídicas ativas e passivas. Sob o ponto de vista processual, essa identidade tem de ser “procurada” na causa de pedir da ação.
 - Quanto a diferentes relações materiais suscetíveis de ser decididas com base na aplicação das mesmas normas jurídicas, este critério pretende integrar várias relações jurídicas materiais que contendo diferentes manifestações de direitos e deveres dos particulares e da administração, mas que apesar disso são resolvidos com a aplicação das mesmas normas jurídicas. Evidentemente é necessário ter em conta que a aplicação das mesmas normas jurídicas, são aquelas que o juiz entenda que devem ser as aplicadas para a resolução do caso e nunca aquelas indicadas pelas partes nas suas alegações de direito, visto que como sabemos o juiz não está vinculado à qualificação dos factos, cabendo assim ao juiz decidir se é ou não com base na aplicação da mesma norma que deve decidir as situações referidas no processo. Devido a esta dificuldades diz-nos o professor Freitas do Amaral que a analise se são as mesmas normas jurídicas deve “ser manuseada pelo tribunal com grande precaução”.
Depois de referir os requisitos da aplicação deste regime, uma das perguntas que se poderia fazer era se existe necessidade de alguma proximidade temporal entre todas as ações intentadas, a resposta é que não é necessária nenhuma proximidade temporal entre estas, sendo até mais compreensível a utilização deste regime quando algum processo já estiver a correr há bastante tempo quando surgem mais processos que se podem sujeitar a este regime, artigo 48 nº2 do CPTA.
Quando se verifiquem todos os requisitos que anuncie anteriormente o presidente do tribunal deve ordenar, em cada processo por despacho fundamentado, a audiência das partes, informando-as do preenchimento do artigo 48º do CPTA e convidando-as a pronunciar-se sobre a situação, decorrido o prazo de prenuncia das partes, deverá o juiz declarar a situação de massificação processual e decidir que processo ou processos classifica como sendo os que devem estar sujeito(s) a efeitos de apreciação e de decisão.
      Como já referi de forma indireta, pode existir mais que um processo que continua o seu andamento, resta explicar o porquê, o presidente do tribunal tem que se certificar que no processo que siga andamento prioritário a questão é debatida em todos os seus aspetos de facto e de direito e que a suspensão da tramitação dos demais processos não tem o alcance de limitar o âmbito de instruções, afastando a apreciação de factos ou a realização de diligências de prova necessárias para o apuramento da verdade, artigo 48 nº3 do CPTA . Por isso de acordo com o nº 4 do mesmo artigo, caso a continuação de apenas um processo possa pôr em causa o que referi anteriormente tem que se selecionar vários processos, que cobram toda a garantia dos particulares. Estes vários processos são apensados em apenas um único. Por isso, o professor Mário Esteves de Oliveira e  o professor Rodrigo Esteves de Oliveira no CPTA anotado enumeram alguns aspetos que se deve ter em conta para escolher o processo que segue o seu andamento, os aspetos referidos por estes são: i) o âmbito das questões de facto e de direito suscitas, escolhendo a petição de mais larga e melhor instrução e fundamentação; ii) a data da entrada em juízo dos processos, escolhendo o primeiro a ser proposto; iii) ao número de contrainteressados, o maior possível; iv) ao valor da ação, escolhendo a de maior expressão económica; v) eventualmente a que seja acompanhada por advogado mais experiente nos domínios do direito administrativo.
      Depois de ter decido qual o processo (ou os processos) que continua o seu andamento, este é chamado de processo piloto, todos os outros ficam suspensos à espera da decisão deste último, de acordo com o artigo 48 nº 5 do CPTA. Desta decisão de suspensão da tramitação ou da apensação de processos podem as partes interpor, no prazo de 15 dias, recurso com efeito devolutivo com fundamento na ausência de qualquer dos prossupostos exigidos para poder ser aplicado o regime dos processos em massa.
Este último processo que segue o seu andamento, de acordo com o artigo 48 nº 8 do CPTA, segue a tramitação dos processos urgentes não especificados no artigo 36 nº 1 do CPTA, deste modo, de acordo com o nº 4 deste último artigo segue os termos da ação administrativa com os prazos reduzidos a metade.  Antes da revisão de 2015 visto que não existia esta “regra geral” de prazos para as ações que seguiam a tramitação de processos urgentes e estavam diretamente tipificados no artigo 36º e tendo em conta que no artigo do regime dos processos de massa era remetido para a tramitação dos processos urgentes era preciso enquadrados num dos processos que estivesse tipificado na altura, o professor Wladimir Brito defendia que “ Tendo em atenção que a urgência desses processos de massa é relativa e não pode ser equiparada à dos processos de contencioso eleitoral, nem à das intimações, nas suas duas modalidades, somos de opinião que tramitação a seguir deverá ser a do contencioso pré-contratual, por serem mais longos e, nessa medida , os únicos  que não limitam anormalmente o âmbito da instrução nem excessivamente apreciação dos factos e a realização das diligências de prova necessárias para o completo apuramento da verdade”. Felizmente com a criação de um regime geral para os processos que seguem a tramitação de processos urgentes não diretamente consagrados no código está resolvida esta questão, artigo 36 nº4.
O julgamento para a tomada da decisão do processo piloto é exigido que seja feita através da formação alargada dos juízes do tribunal, artigo 38 nº8 do CPTA conciliado com o artigo 41 nº2 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os juízes têm que ter sempre em mente que não estão a decidir um caso particular, mas sim que essa decisão irá influenciar todos os outros processos.
Os processos suspensos não pagam a segunda prestação da taxa de justiça artigo 14º A alínea f) do regulamento das custas processuais.
Posteriormente à emissão da decisão do processo piloto esta é notificada às partes dos processos suspensos, podendo estes autores optarem no prazo de 30 dias para desistir do pedido ou recorrer da sentença proferida no processo piloto, artigo 48º nº9 do CPTA. Estas são as únicas opções possíveis, ou o autor nada faz e o tribunal decide oficiosamente a extensão dos efeitos da sentença aos processos suspensos ou o autor interpõe recurso e se este merecer provimento só produz efeitos na esfera jurídica do recorrente.  Este mecanismo não era assim antes da revisão de 2015, tendo sido imposta uma grande restrição aos autores que tenham proposto uma ação que tenha ficado suspensa, pois antes desta reforma era possível o autor optar por o andamento do seu próprio processo que tinha ficado suspenso, esta oportunidade já não é dada atualmente.
A desistência do pedido ocorre normalmente nos casos em que a decisão proferida no processo piloto não lhe é favorável e que em sede de recurso a decisão provavelmente voltaria a ser reafirma e estes preferem não ficar vinculados por uma decisão do tribunal que lhe estenda os efeitos da sentença do processo piloto. Porém se a decisão até é favorável ao autor e se este decide desistir do processo, significa que desiste do pedido o que extingue o direito que o autor pretendia fazer valer na ação.
Quanto ao recurso da sentença, há opiniões como a do professor Wladimir Britos que defende que esta opção é jurídica-processualmente incompreensível, pois é estranho entender como é que alguém pode recorrer de uma decisão antes de esta lhe ser aplicável, mesmo que por extensão, visto que o normal é que apenas as partes possam recorrer da sentença antes do seu trânsito em julgado. Não se intendendo bem como antes de o tribunal decidir a extensão do processo ao caso concreto o autor de um processo que estava suspenso possa recorrer de uma decisão que no momento lhe era estranha.
Depois de ter definido toda a tramitação há uma duvida que se pode levantar, será que o regime dos processos de massa se pode apenas aplicar quando o tipo de pedido é o mesmo? Segundo o professor João Tiago Silveira podemos aplicar o regime dos processos em massa mesmo quando estejam em causa pedidos diferentes, pois o artigo 48º do CPTA não faz qualquer limitação, apenas se exige que a questão aplique as mesmas normas a idênticas situações de facto.
Ocorreram mais duas mudanças significativas no regime dos processos de massa, com a revisão de 2015. A primeira é o facto da decisão da aplicação ser um poder discricionário, devendo o presidente do tribunal decidir de forma livre qual seria a melhor opção para o caso se era a aplicação ou não do regime, esta discricionariedade era demonstrada por no artigo 48 nº 1 ser utilizada a expressão de “pode”, com a revisão de 2015 passou a ser utilizada a expressão de “deve” podemos assim defender que agora passou a existir uma obrigatoriedade de recorrer a este regime quando os pressupostos estejam preenchidos, esta alteração para alguma doutrina não é vista como um mudança positiva, visto que defendiam que a solução mais correta era a aplicação deste regime ser escolhida quando o juiz presidente chegasse à conclusão que esta era a melhor opção para resolver todos os processos. A segunda grande novidade que as alterações de 2015 trouxeram está presente no nº 6 do artigo 68 do CPTA, sendo agora indiferente em que tribunal são propostos os 10 processos, podendo o presidente de qualquer dos tribunais tomar a iniciativa de aplicar o regime, mas sendo o presidente do Supremo Tribunal Administrativo a escolher qual o processo ou processos que devem continuar o seu andamento, podendo decidir com base numa proposta dos presidentes dos tribunais envolvidos, artigo 68 nº 7 do CPTA. Esta alteração já há muito que era pedida pela doutrina que não via como se podia justificar o facto de estando preenchido o número mínimo de processos não pudesse ser aplicado o regime pelo facto de os processos não terem sido propostos todos no mesmo tribunal. Podemos assim concluir que foi uma alteração positiva e que facilita a aplicação do regime.
      Depois de ter explicado todo o regime, importa verificar as melhorias que ele nos trouxe, entre outras vantagens podemos enumerar: i) a decisão de uma informação potencialmente uniformizada; ii) Intervenção de todos os juízes do tribunal aumentando o grau de potencial uniformidade; iii) Desnecessidade de lidar com número elevado de processos e peças processuais diferentes; iv) Celeridade pela aplicação do regime dos processos urgentes; v) Celeridade resultante do descongestionamento. Por outro lado, as principais desvantagens que podem ser encontras: i) a dificuldade de escolher um processo que consiga abranger todos as questões que se encontram em nos processos suspensos; ii). Conseguir fazer os particulares entenderem que o seu processo vai ficar suspenso à espera de um processo de terceiros e que essa decisão vai influenciar todo o seu processo. Apesar destas desvantagens, considero que as vantagens são muito mais fortes e que a introdução deste regime tem efeitos benéficos no nosso ordenamento.
Importa por fim fazer uma distinção entre este regime e o que está consagrado no artigo 99º do CPTA, novidade introduzida na reforma de 2015. A principal diferença é que este regime de processos em massa é uma forma de agilizar o processo, que é obrigatória, enquanto nos procedimentos de massa, no artigo 99º do CPTA é um tipo de processo urgente com tramitação específica, sendo que aqui as partes são livres de fazer a coligação, mas se não fizerem ficam impedidos de propor uma nova ação, os requisitos também são diferentes, mas não querendo fazer uma enumeração exaustiva, podemos apenas ver que estes tipo de processos são sobre ações respeitantes à prática ou omissão de atos administrativos no âmbito de procedimentos com mais de 50 participantes, nos domínios de : i) Concursos de pessoal; ii) procedimentos de realização de provas; iii) Procedimentos de recrutamento. Uma última diferença é que nos processos de massa, como expliquei em supra, existe apenas um processo que continua a seu andamento (ou mais que um processo), mas os restantes ficam suspensos, no procedimento de massa existe a decisão de todos as ações que forem propostas.
O professor Vasco Pereira da Silva, afirmou na sua aula teórica relacionada com o tema, que não faz sentido a existência destes dois regimes, e por isso defende que o regime de processos de massa deveria desaparecer e este novo regime dos atos de procedimento de massa deveria abarcar todos os casos. Cabe afirmar com todo o respeito que não faz tanto sentido assim juntar os vários casos em apenas um processo visto que cobram aspetos diferentes e são aplicados em situações muito diferentes.
Concluo este trabalho seguindo o professor Mário Arenoso de Almeida que afirma que antes da alteração da revisão do artigo 48º do CPTA, o legislador procurava o menos possível restringir a tutela dos interessados que estão na posição de verem o seu processo suspenso, tal como é seguido na lei espanhola, depois das alterações introduzidas em 2015, que enumerei durante todo o trabalho, o legislador restringiu essa tutela dos particulares em contrapartida de dar uma maior aplicação a este mecanismo de agilização processual, cabe analisar no futuro se esta foi a melhor opção.

 Marlene Filipa Soares Cardeira   nº25946

Referências bibliográficas:
- José Carlos Vieira de Andrade, “A justiça administrativa”, 12ª ed, Lisboa, 2012
- Vasco Pereira da Silva, “Em busca do acto administrativo perdido”, 2016
- Mário Arenoso Almeida, “Manual de processo administrativo”, 3ªed, Almedina, 2017
- João Tiago Silveira «O mecanismo dos processos em massa no contencioso administrativo» in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, volume IV, Coimbra, 2012
- Wladimir Brito, “Lições de Direito Processual Administrativo” 2ª edição, Coimbra, 2008
- Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, Volume III, Lisboa, 1989
- Código de processo nos tribunais administrativos: estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotados / Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, 2000


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