sábado, 16 de dezembro de 2017

A legitimidade passiva dos particulares

A legitimidade passiva dos particulares


§Introdução
Este trabalho versa sobre uma análise acerca da evolução da figura da legitimidade passiva no contencioso administrativo, para seguidamente se poder proceder ao subsequente estudo sobre a aplicação desta figura processual aos particulares.
O art.10º/9 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), estipula o seguinte: “ Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares”. Atente-se que daqui advém a possibilidade de num tribunal administrativo existir um processo em que ambas as partes, tanto o autor como o demandado, sejam ambos particulares. 

§ Análise à evolução da legitimidade passiva
Relativamente à legitimidade (tanto passiva como activa) de realçar o facto de esta ser um pressuposto processual. Daí que o Prof. Vasco Pereira da Silva afirme “ No que respeita à legitimidade - que, do ponto de vista da teoria do processo, constitui o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais”[1]. Mais ainda, o Prof. Mário Aroso de Almeida afirma “O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto processual e não como uma condição de procedência da acção” [2].Observada assim a importância desta figura, que reveste um pressuposto processual, fácil se torna constatar que a evolução desta figura repercutiu sempre efeitos no contencioso administrativo.
No que respeita à história evolutiva do contencioso, o Prof. Pereira da Silva refere que “de acordo com a lógica clássica, (…) o contencioso administrativo “por natureza” era de tipo objectivo (…) a  integralidade do processo gravitava em torno do acto administrativo, que “era tudo e todas as partes” “[3].  Vemos assim que as partes eram relegadas para um papel muito mais subalterno do que aquele que possuem hoje, tanto mais que “ nem o particular nem a administração eram considerados como partes, antes estavam em juízo para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público”[4]. Uma das conclusões a que este autor chega é a de que na óptica tradicional do contencioso administrativo o particular não fazia valer direitos perante a administração. Talvez pior ainda seja o facto realçado também pelo autor de que não era apenas ao particular que era negado o estatuto de parte, mas também “à administração”. Ou seja, no contencioso clássico, a entidade administrativa, autora do acto em questão no processo contencioso, encontrava-se no processo não como parte, mas como “autoridade recorrida”[5]. A crítica que o Prof. Pereira da Silva lança a esta figura do passado é a seguinte “a autoridade que praticou o acto e o tribunal não são terceiros, mas uma só e a mesma parte”[6].
Esta visão da história foi ultrapassada com a Constituição actualmente em vigor, devido aos seus artigos 268º/4 “ é garantida aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos” e art. 20 º “ a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais”.
Aqui chegados, no dizer do Prof. Pereira da Silva, quanto ao papel que actualmente é desempenhado pela administração no contencioso (quando demandada)  “ é chamada a tribunal para explicar as razões daquela sua actuação concreta, ocupando no processo a posição de uma parte, com todos os poderes e deveres que lhe são inerentes. Tanto a administração como o particular se encontram na mesma situação processual, devendo ambos colaborar com o juiz para que a justiça seja realizada”[7]. Podemos assim ver que no actual contencioso administrativo, tal como decorre da constituição inclusive, existe uma igualdade de partes, não existindo nem uma subalternização nem uma diferenciação discriminatória no trato processual, entre particulares e administração. Tal igualdade advém também do próprio art.6º do CPTA, “igualdade das partes”. Podemos assim verificar que numa clássica acção contenciosa entre um particular e uma entidade da administração pública demandada, tanto o particular na defesa do seu interesse individual (por exemplo), e a administração na defesa do interesse público (pretende-se que seja na defesa deste interesse….), ambas as parte terão de obter pelo tribunal administrativo um verdadeiro estatuto de igualdade.
Para finalizar este breve enquadramento histórico, poderemos dizer em traços gerais que no “génesis” do contencioso, nem os particulares nem a administração eram considerados verdadeiras partes. Tendo ou não a evolução do contencioso administrativo sido tumultuosa, poderemos concluir que o estado actual da história demonstra uma clara conquista dos intervenientes processuais na relação” jurídica administrativa”.
§ A legitimidade passiva dos particulares e a sua “razão de ser”
“ No que respeita à legitimidade passiva, o critério é também o da relação material controvertida, considerando-se como partes as entidades públicas, mas também os indivíduos ou as pessoas colectivas privadas”[8], é nestas palavras que o Prof. Vasco Pereira da Silva aborda a temática da legitimidade passiva.  Acerca desta matéria de citar ainda o Prof. Aroso de Almeida, que sobre o art.10º/9 refere, “ o sentido mais óbvio, e ao mesmo tempo mais importante do preceito é o de tornar claro (…) que os particulares podem ser demandados a título principal “[9]
Cabe aqui lançar a breve trecho uma explicação sobre a importância deste preceito abranger os particulares. Atendendo às circunstâncias do mundo actual e observando a panóplia de atividades prosseguidas pela administração dos nossos dias (desde matéria regulatória, ambiental, ação/apoio social, entre outros) e à diversidade de formas de prosseguir essas atribuições, (contratação pública por exemplo), que seria incoerente se em paralelo com a “actuação administrativa” o contencioso administrativo não reconhece-se relevo aos particulares. Poderemos até afirmar que um dos paradoxos da administração dos nossos dias se prende com o facto de não ser uma administração “toda poderosa” como foi outrora na história, quando não tinha tantas atribuições; e actualmente, numa era em que à administração lhe é atribuída tantos objectivos a alcançar, esta enquanto “corpo” é muito menos reduzido, muito devido ao facto do recurso aos particulares. 
Quanto ao regime a aplicar a estas entidades privadas, o Prof. Pedro Gonçalves, na sua tese de Doutoramento afirma o seguinte “ quando desenvolvam actuações num espaço em que se encontrem investidas de poderes públicos, as entidades privadas ficam submetidas ao direito administrativo”[10]. Ou seja, daí a que muitas vezes exista o conceito de actuação no ” exercício de poderes  jurídico- administrativos”, ou a expressão actuação com base em prerrogativas de poder público.
§ Actos praticados por particulares
Problema que se suscita nesta matéria prende-se na questão de catalogação dos “actos” praticados por particulares. A este respeito, o Prof. supra citado, na mesma obra refere “ os actos das entidades privadas qualificam-se como actos administrativos nos mesmos termos em que como tais se qualificariam se fossem praticados por órgãos de entidades públicas”[11]. O autor opta por este entendimento ancorando-se no facto de considerar que a “delegação” dos poderes públicos em entidades privadas para estas tomarem decisões que posam ser consideradas como sendo “actos administrativos”, então, para este autor é razão bastante para se poder considerar estarem preenchidos os requisitos formais para a consideração destes actos como sendo administrativos. A este respeito, o próprio autor confronta a posição do Prof. Viera de Andrade, para quem “ o conceito processual de ato administrativo impugnável é diferente do conceito de acto administrativo”. Pois, para o autor em questão, o conceito de acto administrativo para termos contenciosos é mais “vasto”, conclusão esta retirada do facto de não depender da qualidade do seu autor. Isto é, para o Prof. Vieira de Andrade, enquanto que para o direito administrativo o conceito de “acto” necessita de atender ao seu autor, neste caso ao tipo de entidade que o emitiu; enquanto que para o direito do contencioso administrativo, o autor do acto administrativo não interessa para efeitos de catalogação do “acto” como sendo ou não administrativo. Sendo que como tal o autor inclui neste “segundo tipo de actos “, as decisões de entidades privadas que actuem no exercício de poderes públicos.
§ Sujeição de particulares à jurisdição administrativa
Para o Prof. Pedro Costa Gonçalves,  a sujeição de particulares à jurisdição administrativa advém da combinação dos arts. 212º/3 da CRP, relativo aos tribunais administrativos e fiscais; do art.20/1 da CRP, acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva;  e do art.268º7 4 e 5 da CRP, direitos e garantias dos administrados. Sendo que o Autor acaba por referir que “ não seria constitucionalmente justificada uma solução legal que desviasse dos tribunais administrativos a competência para apreciar actos e actuações públicas apenas pelo facto de provirem de entidades privadas”[12].
Atendendo ao previsto no art.51º do CPTA, este estatui no seu nº1 “ são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”.  Ou seja,  o artigo em questão define o conceito de acto impugnável de forma clara a poder abranger os actos advenientes da actuação de entidades privadas, os ditos particulares.
Quanto às vias de impugnação, consideraremos que é directamente possível o recurso à impugnação jurisdicional, ou seja, ao contrário de outras situações, não parece ser de atender a argumentação de que também quanto a entidades particulares possa existir um dever de recurso administrativo efectuado “dentro” da própria entidade.
Mais importante é a relação entre os vários números do art.10º do CPTA. Atente-se ao nº4  deste artigo, que estipula que quando na acção seja demandado o órgão da entidade pública e não a entidade, que tal não obsta a que se considere regularmente proposta a acção em causa. Posto isto, cabe agora realçar a articulação do nº4 do presente artigo juntamente com o nº9 do mesmo, o que suscita a seguinte questão: será possível demandar um órgão de uma entidade particular e não a entidade e mesmo assim tal continuar a ser considerada regularmente proposta?  Imagine-se que A, Autor, demanda na acção o órgão de administração da sociedade B, e não contra a sociedade (neste caso a entidade). Atendendo a uma articulação com o nº4 do art.10º do CPTA, poderemos ver que estamos aqui perante uma lacuna, que a nosso ver poderá ser resolvida tendo por base uma interpretação sistemática do art.10 do CPTA, como tal, parece-nos de arguir pela regularidade da acção se nela for demandado órgão da entidade particular e não a entidade particular em si.

§ Conclusão

Como primeiro ponto conclusivo, referir que tal como acima explanado, a figura da legitimidade passiva de particulares serve quase como exemplo claro de que o contencioso administrativo não é alheio às alterações do direito administrativo e da sua realidade prática. Numa altura da sua história em que muitas das suas atribuições são realizadas com recurso ao serviço de particulares, tal realidade não é alheia ao contencioso, podendo nós assim dizer que traços gerais o contencioso “chama à colação” esses mesmos particulares que tenham uma relação com a realização e prossecução das funções da administração.
Segundo aspecto desta conclusão, referir a discordância com a posição do Sr.Prof. Vieira de Andrade, explicada supra, relativamente à sua posição acerca do conceito de ato administrativo. Para além de ser adoptada antes a posição do Prof. Pedro Gonçalves, que através da relação existente entre particular e administração conclui pela consideração de que o acto que emane dessa entidade privada, desse particular, constitui um verdadeiro acto administrativo. Suportando-nos nós nessa posição, acrescentar apenas que parece ser ainda o critério da segurança jurídica, (pois não nos parece conveniente para a estabilidade jurídica arguir que o que pode ser um ato administrativo para o contencioso administrativo pode não o ser para o direito administrativo), um motivo de valor acrescentado para enfileirar a doutrina do Prof. Pedro Costa Gonçalves.
O último ponto desta conclusão prende-se com a questão da articulação do art.10/4 com o nº9 do mesmo artigo. Parece ser um caso claro de uma lacuna na letra da lei, mas que parece também ser facilmente solucionada utilizando a mesma ratio do  nº4, pensado para a administração pública e os seus órgãos, e aplicar tal qual para os particulares. Tanto mais que parece advir até do dever de tratamento em igualdade das partes, do art.6º do CPTA, pois seria um pouco descabido ver por parte de um tribunal administrativo proferir a regularidade de uma acção em que o demandado seja um órgão de uma entidade pública, e quando se trate de um órgão de uma entidade privada, proferir a irregularidade apenas porque foi demando um órgão (por exemplo o conselho de administração da empresa X) e não a entidade privada, o particular “sociedade X” .
Adolfo Oliveira Rafael aluno nº 26097 TA Subturma 3



[1] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.368
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º edição, Almedina, pág 213
[3] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[4] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.255
[5] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[6] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.257
[7] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.258

[8] SILVA, Vasco Pereira, in “ O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2º edição, pág.273
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de , in “Manual de Processo Administrativo” , 2017, 3 º edição, Almedina, pág 251
[10] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1051
[11] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1058
[12] GONÇALVES, Pedro Costa, in “Entidades privadas com poderes públicos”, Almedina, 2005, pág 1059

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